[Passageiro #78] O viajante relutante
Comemorei meus 35 com uma road trip até a Normandia e descobri que não tenho mais 18 anos.
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Dia 6 de junho, 18h do Brasil, rola um workshop sobre “E-mail marketing para iniciantes” e estou oferecendo 50% de desconto no plano anual.
🎧 Para ler ouvindo1: Yes I’m Changing, por Tame Impala.
1.
Eu tinha 18 anos de idade e nenhuma noção de mundo na primeira vez em que cruzei as fronteiras brasileiras rumo ao desconhecido. O ano era 2007, eu ainda morava com os meus pais em Imbituba e cursava o segundo semestre de Relações Internacionais na vizinha Tubarão (a prefeitura de Imbituba oferecia transporte para os estudantes; eu perdia umas 3h por dia indo e voltando; às vezes mais; era a época da duplicação da BR-101) quando surgiu a oportunidade de participar do III Encuentro Iberoamericano de Relaciones Internacionales (IBERAM), um congresso em Buenos Aires sobre perspectivas políticas y económicas en una Iberoamérica presente que aconteceria no Hotel Panamericano; a Unisul, a faculdade, seria responsável pelo deslocamento (pouco mais de 30 horas de viagem num busão no percurso Tubarão-Buenos Aires); caberia a nós, os estudantes, bancar R$ 200 pela hospedagem durante os três dias de congresso; não no suntuoso Hotel Panemericano, evidentemente; seríamos sete cabeças por quarto num hostel qualquer de San Telmo; o banheiro era compartilhado.
2.
A maioria era como eu, viajantes de primeira viagem desempregados que receberam alguma ajuda com os R$ 200, mas um ou outro, cujos pais eram bem-relacionados, já estagiavam em empresas da região – e, ainda que o grupo dos viajantes de primeira viagem desempregados de certa forma também tenha os seus privilégios (fazer uma faculdade; ter alguém para ajudar com os R$ 200), esse recorte social diz muito sobre o mercado de trabalho e as oportunidades (ou a falta delas) no Brasil.
A primeira parada do busão foi em Criciúma, a cidade dos filhos de pais bem-relacionados, dos herdeiros, das patricinhas, do D. que fez intercâmbio em San Diego, do L. que fez intercâmbio em Amsterdam – ao longo das próximas 30 horas ele tentaria transformar nosso busão no Furthur de Ken Kesey & dos Festivos Gozadores – e ainda visitou o D. em San Diego, da K. e da S. que haviam recém-chegado de um intercâmbio em Fort Lauderdale (é assim que se escreve?).
Já perto da fronteira com a Argentina, o motorista do busão – que felizmente não era Neal Cassady –, sentiu um cheiro estranho vindo do banheiro, não fruto de necessidades fisiológicas, mas de fumaça, um cheiro muito específico de fumaça, não era tabaco, não, era mais forte; era L. fumando o seu segundo baseado às 9h da manhã.
L. ficou contrariado, mas teve que dar descarga em toda a erva. Ele teve sorte. Assim que chegamos na fronteira tivemos que descer do busão e os homens da lei revistaram todas as bagagens. “Não ia dar em nada”, L. sacode um maço de dinheiro – bem mais que R$ 200 – em direção a D., “era só molhar a mão dos caras, tipo aquela vez em Tijuana”.
3.
“Cara, lá em San Diego era pique American Pie, as festinhas na casa dos coroas de alguém, os copos vermelhos e tal”. Eu adorava as histórias de D. sobre San Diego – sempre fui fascinado com a cidade porque o blink-182 é de lá – e confesso que sentia inveja por nunca ter vivido algo do tipo. Ele e L. eram veteranos já na casa dos 20, mas fazíamos algumas matérias juntos por conta do tempo em que eles ficaram fora durante seus respectivos intercâmbios.
Já em Buenos Aires, as panelinhas sociais começaram a se formar e, apesar de gostar da companhia de D. e L., me juntei ao grupo dos menos abastados; durante três dias e três noites nossa alimentação foi baseada em cachorro-quente de uma pancheria que ficava em frente ao hostel e suco Ades de abacaxi com vodka.
Embora o quarto supostamente fosse para sete pessoas, haviam apenas seis camas de solteiro e um colchão fininho no chão; me ofereci para ficar com o colchão; as 30 horas no busão foram mais confortáveis que as três noites no hostel.
4.
De volta a Imbituba, eu estava decidido a ser mochileiro. Criei o meu primeiro blog, o The Supertramp, que ficaria no ar entre 2008-2010 – a ideia era escrever relatos e crônicas de viagens, mas como não fiz outras viagens no período, essa primeira iniciativa literária não foi longe.
Já em 2013, após ter juntado uma grana para um mochilão pela Europa, nasceria o matheusdesouza.com – esse no ar até hoje.
5.
“Dizem que viajar é viver. Talvez. Isso se um dia no aeroporto não te sugar a vida primeiro. Quer dizer, onde mais te diriam para chegar duas horas mais cedo, só para se aproximar perigosamente de ficar duas horas atrasado? Mesmo assim, as minhas viagens no ano passado foram boas para mim. Parece que ampliaram a minha visão. Até certo ponto.”
Eugene Levy (o Noah Levinstein de American Pie) no episódio 5 da 2ª temporada de O Viajante Relutante, série da Apple TV+.
Fiz 35 anos. Olhando para trás, vejo que realizei o sonho do Matheus que queria ser mochileiro. Mas agora meio que deu. Entre 2017 e 2023 peguei mais de 100 voos ao redor do mundo, o que confesso ter me deixado meio de saco cheio de aeroportos e tudo o que envolve uma viagem aérea.
Dito isso, para comemorar o meu aniversário deste ano, I. e eu planejamos uma road trip de Paris até Étretat, uma cidadezinha na costa da Normandia. Algo mais tranquilo, sem filas, sem raio-x, sem horas perdidas. O tempo de deslocamento seria aproveitado com belas paisagens. Seria perfeito. Até certo ponto.
Alugamos um carro no site da Europcar (guarde esse nome) e um Airbnb com vista para as falésias d'Aval; os dias de dividir um quarto com seis pessoas em um hostel e dormir em um colchão fininho no chão felizmente chegaram ao fim.
São cerca de 3h de viagem de Paris até Étretat, de modo que nosso plano era pegar o carro às 9h e chegar na Normandia para o almoço.
O atendente da Europcar pede o cartão de crédito (físico) utilizado na reserva.
“Só tenho o digital na minha wallet”.
“Eu preciso do físico”.
“Mas é a mesma coisa”, tento explicar.
“A aproximação não está funcionando, você vai precisar inserir o cartão e digitar a sua senha”.
“Bom, eu tenho outro cartão aqui comigo”.
“Tem que ser o mesmo da reserva. Aliás, percebi que a reserva foi feita no nome da sua esposa e o cartão está em seu nome. Isso não é possível. O pagamento tem que ser feito com um cartão no nome de quem fez a reserva”.
“Mas eu já paguei no site. Não faz sentido”.
“Eu entendo, mas são as regras”.
“E se eu fizer uma nova reserva agora com esse outro cartão e no meu nome?”.
“Você pode, mas ficaria o dobro do preço”.
“Por que?”.
“Porque sim. Outra opção é adicionar você como segundo motorista na reserva em nome da sua esposa. Aí você teria que pagar mais 80 euros”.
“Mais 80 euros?”.
“Sim. É o único jeito de o senhor utilizar o seu cartão. Mas preciso dele físico”.
Volto até em casa (10 minutos andando), pego o cartão e um caução de 500 euros é cobrado.
“Você tem que devolver o carro com o tanque cheio”.
Ligo o carro e percebo que há apenas 1/4 de gasolina. Aviso o atendente, ambos fazemos uma foto do ponteiro e ele anota qualquer coisa em um papel.
“Fique tranquilo, você não será cobrado”.
6.
Deixamos Paris com quase duas horas de atraso; sair de Paris, inclusive, leva uma hora; o trânsito por aqui é horrível.
O caminho até a Normandia é realmente lindo, mas depois de um tempo a paisagem cansa. Ainda que o carro seja confortável, conforme as horas vão passando não encontro mais uma posição em que minhas pernas não doam.
“Falta quanto tempo?”, pergunto para I.
“1h30”.
“Ainda?”.
Os números foram mudando, mas esse diálogo se repetiria algumas vezes até chegarmos em Étretat no meio da tarde.
7.
Do Airbnb pouco saímos.
Foram duas noites e dois dias olhando o mar e escutando o barulho das ondas e das gaivotas – e comendo o delicioso cento de salgadinhos da Raquel (se você mora em Paris e região, recomendo muito!).
Aos 35, esse é o meu novo tipo de turismo favorito.
8.
“Quanto tempo até Paris?”.
“Mais 1h. Tem engarrafamento na entrada da cidade”.
“Tô louco pra chegar e deitar na nossa cama”.
“Estamos parecendo o senhorzinho daquela série da Apple”, diz I.
“Como aguentamos essa vida de nomadismo por tanto tempo?”.
“Não faço ideia”.
9.
“Recebi uma cobrança da Europcar por e-mail. Além dos 80 euros do segundo motorista, cobraram mais 150 de gasolina”, me escreve I. no dia seguinte.
(Eu havia enchido o tanque quando saímos de Paris e devolvi o carro com 1/2 tanque. A gasolina custou 88 euros).
“Na próxima vamos de ônibus”, sugiro.
“Que próxima?”.
10.
Lembro de D. e L. e procuro seus perfis no Facebook.
Eles, que costumavam andar de skate e fumar maconha antes e depois das aulas, também mudaram bastante de 2007 para cá; agora são mais conservadores.
Em um post de janeiro de 2023 no Facebook, D. pede intervenção militar. L., que em seu perfil costuma publicar fotos em um clube de tiro, deixa um comentário com o emoji da bandeira do Brasil no post de D. Em 2020, L. foi candidato a vereador por um partido de extrema-direita. Ele, que teve menos de 100 votos, diz ser favorável ao voto impresso. Ambos são gerentes nas empresas dos seus pais, o que mostra certa meritocracia; em 2007 eram apenas estagiários.
💡 Flow Criativo
Crie conteúdo com organização e constância, cresça sua presença digital e atraia clientes que te valorizam: é o que promete meu amigo e mentorado Emanuel Criativo em sua mais nova empreitada.
Emanuel é um dos caras mais metódicos e organizados que conheço dentro desse universo de produção de conteúdo (ele reorganizou todo o board que criei no Notion para o pessoal da minha mentoria haha).
O Flow Criativo é perfeito para quem está começando a criar conteúdo ou já começou, mas sente dificuldade em:
Manter a constância nas redes sociais;
Conseguir organizar a criação de conteúdo;
Ter muitas ideias, mas trava na hora de criar;
Equilibrar o seu tempo entre criação e seu trabalho ou clientes;
Chamar atenção das pessoas.
Ah, e tem mais: entre outros bônus, quem se inscrever até o dia 14 de junho ganha uma masterclass comigo sobre os bastidores de uma newsletter best-seller.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Estou lendo Vida de escritor, do Gay Talese.
Estou assistindo Tokyo Vice, no Max. Série noir que vai bem num fim de noite.
Frog In Boiling Water, o novo álbum do DIIV, tá muito bom. Eles tocam em São Paulo em 15 de setembro.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Estou pensando em algo aqui e gostaria da opinião de vocês (que podem responder no próprio Substack ou por e-mail).
Há pelo menos dois anos venho matutando uma ideia de romance que se passa na Tailândia. Nos últimos meses pesquisei muito sobre os temas que abordarei no livro, participei do curso “As engrenagens do romance” da (que super recomendo) e rascunhei os primeiros parágrafos da história.
Ontem estava relendo Memórias póstumas de Brás Cubas após o hype criado por uma influenciadora digital nos Estados Unidos e descobri que a obra de Machado de Assis foi desenvolvida em princípio como folhetim, de março a dezembro de 1880, na Revista Brasileira, para, no ano seguinte, ser publicada como livro.
Lembrei de outras obras literárias que foram publicadas primeiro em jornais ou revistas – como Medo e delírio em Las Vegas, de Hunter S. Thompson, publicado originalmente em duas partes na revista Rolling Stone até virar livro – e pensei com meus botões: e se, como mais um benefício para os assinantes pagos da newsletter, eu liberar mês a mês os capítulos de Há algo de podre no reino da Tailândia (o título provisório do meu romance) até ele, de fato, virar livro?
Da minha parte, como escritor, acho que seria ótimo porque me forçaria a escrever, porém, penso no leitor no papel de consumidor.
O que vocês acham da ideia?
Ah, a fase em q temos saudades de viajar e saudades de casa. Bem-vindo!
Nojo do D. e do. L. 😂
Oioi, Matheus!
Estamos de volta! Viemos para o sul para visitar familiares e fomos engolidos pela tragédia no RS.
Hoje colocamos em dia a leitura de todas as edições da sua newsletter que não havíamos conseguido ler e recebemos a sua pergunta como um sopro de vida e esperança! Sim, sim, sim. Se para você fizer sentido criar essa newsletter para estimulá-lo a escrever um romance, “tamo junto”.
Colocar em dia a leitura das edições do Passageiro foi um resgate do stress emocional diante de tudo o que ainda está acontecendo aqui no RS. Poder ler um romance seu seria uma dose a mais de energia positiva que alimenta nossas vidas.
Um grande abraço!💙