[Passageiro #85] Diário olímpico: bastidores, reflexões e recortes de Paris 2024
Entre jornalistas, celebridades e influenciadores, um sonhador peixe fora d'água insistindo em (tentar) viver da escrita.
🚨 Novidade no Clube Passageiro 🧳
A newsletter Passageiro é gratuita, porém, ao assinar o Clube Passageiro você tem direito a benefícios exclusivos – incluindo workshops mensais, uma comunidade no Telegram e os bastidores do processo de escrita de Há algo de podre no reino da Tailândia, meu primeiro romance.
Desde maio de 2023, quando o Clube Passageiro foi fundado, exatamente 14 workshops com os mais variados temas foram realizados – e a novidade é que assinantes do recém-lançado Plano Vitalício1 têm acesso a todo o acervo.
Confira as informações sobre o Plano Vitalício e a lista de workshops disponíveis neste link.
🎧 Para ler ouvindo2: Why Won’t They Talk To Me?, por Tame Impala.
1.
Evilázio, de todas as moribundas vertentes do jornalismo, talvez essa seja a primeira a bater as botas.
Em meu último trabalho “tradicional”, por assim dizer, minha ex-gestora aplicou um destes testes comportamentais para avaliar o perfil dos membros da equipe. O resultado do meu teste foi “sonhador” – a ex-gestora, que na época trabalhava há cinco anos na empresa, disse que era a primeira vez que um perfil do tipo aparecia entre os colaboradores; um claro indício de que eu estava no lugar errado.
Olhando para trás, para toda a minha preparação para a cobertura dos Jogos Olímpicos de Paris, acredito que criei expectativas irreais. Li muito Hunter S. Thompson, Joan Didion, Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailler. Assisti episódios antigos de A Cook’s Tour, o primeiro programa televisivo de Anthony Bourdain3. Devorei o arquivo da extinta Revista Manchete4. Comecei a lutar boxe. Treinei com uma maratonista olímpica (esse texto ainda não foi ao ar). Fiz o dever de casa. Sonhei. Mas sonhei um sonho talvez incompatível com 2024.
“Alguns deles eram mais jornalistas que errantes e outros eram mais errantes que jornalistas, mas, com poucas exceções, eram supostos correspondentes internacionais freelancers de meio período que, por algum motivo, viviam a uma boa distância do establishment jornalístico. Não eram escravos eficientes ou papagaios nacionalistas como aqueles que integravam as equipes dos jornais e revistas conservadores do império Luce5. Pertenciam a outra raça”.
(Hunter S. Thompson em Rum Diary)
O grande problema com o jornalismo literário nos dias de hoje, Evilázio, está na velocidade da informação.
Durante as três últimas semanas fomos bombardeados com “conteúdos” (falaremos disso mais adiante) de influenciadores (também falaremos disso mais adiante) nas redes sociais, de modo que o assunto Jogos Olímpicos parece ter saturado rapidamente6; no papel de consumidor, fui bombardeado com tantas informações e entretenimento sobre Paris que minha vontade neste exato momento é comprar uma passagem só de ida para algum país do Sudeste Asiático (você sabe qual, Evilázio) e respirar outros ares, fazer um detox – não só das redes sociais, mas de Paris.
Esse tipo de cobertura literária funcionou até o começo dos anos 2000 – David Foster Wallace talvez tenha sido o último grande nome – porque as redes sociais não existiam. As pessoas liam – jornais, livros, revistas – não apenas porque gostavam de ler, mas porque as opções de entretenimento eram limitadas. As redes sociais ainda não tinham fodido nossas cabeças – e nossos níveis de dopamina. A resposta dos meus leitores em relação a Medo e Delírio nas Olimpíadas de Paris tem sido a melhor possível (obrigado, Evilázio!), mas infelizmente isso não basta; isso não paga as contas no fim do mês.
Além do mais, a inteligência artificial deve ser a última pá de terra para quem ainda ousa sonhar em viver da escrita, mas falaremos do assunto em outra edição desta newsletter.
2.
Bastou um dia no Paris Media Centre para eu perceber que esse meu perfil errante e sonhador de suposto correspondente internacional freelancer de meio período me causaria um sentimento constante de não pertencimento, de peixe fora d’água, um sentimento que apareceria em todas as minhas interações com jornalistas reais, jornalistas contratados por algum veículo, todos muito formais, muito certinhos, alguns escravos eficientes, outros papagaios nacionalistas, e eu o único fazendo isso que nem eu saberia lhes explicar direito a cada interação desastrada em coquetéis de imprensa, uma espécie de Kevin Parker (Tame Impala) no clipe de Why Won’t They Talk To Me?, cantando e tocando todos os instrumentos.
3.
Estou em um tour de imprensa organizado pela prefeitura de Paris para que os jornalistas tenham a chance de acompanhar a rotina das brigadas Urgente Propreté, equipes móveis de garis que cuidam das ruas através de um aplicativo (Das ma rue; “Minha rua”) em que os parisienses podem acioná-los em demandas como pichações ou móveis descartados. Sou o único que não fala francês fluente, de modo que um tradutor (FR-IN) é designado a me acompanhar.
O representante da prefeitura fala de números (“a brigada conta com mais de 200 agentes”; “outros 5 mil garis operam em Paris todos os dias”; “aproximadamente 350 toneladas de bitucas de cigarro são coletadas por ano em Paris, o que significa 29 toneladas por mês”), os jornalistas anotam tudo atentamente, fazem perguntas (“qual a diferença entre grafite e pichação?”), um gari pede a palavra para dizer que, além dos cigarros, eles também coletam muitas fezes – após uma pausa dramática ele diz que “nem todas são de cachorros” e essa é a única anotação que faço em meu caderno; os números peguei no press release – e seguimos a brigada em uma demonstração onde uma dupla de garis atende uma solicitação no aplicativo – alguém largou uma cadeira velha em frente a um prédio.
A brigada segue com um carrinho (“o carro é elétrico”, me explica o tradutor que traduz o que é falado apenas de vez em quando) até o local da notificação enquanto caminhamos até lá. O gari do comentário sobre as fezes pega a cadeira e a coloca no carrinho enquanto os jornalistas filmam a demonstração com seus celulares.
– Você quer perguntar algo para os garis? – questiona o tradutor.
– Não, obrigado. Já tenho o que preciso. Acho que vou escrever sobre as fezes.
4.
Segundo o release, a Casa Brasil “é um espaço do Comitê Olímpico do Brasil para celebrar o esporte e a cultura brasileira. Um lugar onde você terá a oportunidade de acompanhar o Time Brasil durante as competições ao longo dos Jogos Olímpicos, ter contato com os atletas, e degustar comidas7 e bebidas típicas brasileiras”.
Se no Paris Media Centre me senti um peixe fora d‘água em meio aos jornalistas, o sentimento constante de não pertencimento foi ainda maior entre os influenciadores (agora sim falaremos deles).
“Eles publicam nada sobre nada, com alguma imagem de Paris ao fundo”, escreve Mauricio Stycer na Folha de S.Paulo. complementa no X que tudo é “profundamente raso e constrangedor de ruim”.
Estou na área externa da Casa Brasil, onde há um telão para os meros mortais acompanharem as competições em que atletas brasileiros estão envolvidos, quando uma influenciadora com milhões de seguidores e uma energia caótica surge ao meu lado perguntando coisas rasas e constrangedoras de ruins, uma vibe Pânico na TV só que mais jovial, mais Geração Z, de modo que dou respostas ruins para perguntas ruins e, apesar de ter autorizado a publicação do vídeo com a “entrevista”, fico aliviado quando ela não vai ao ar.
Já no cercadinho VIP, espaço dedicado aos jornalistas, celebridades, influenciadores e outros convidados, observo atentamente um influenciador gravar uma publi sobre um celular dobrável. Após a gravação, ele tira seu iPhone do bolso e, com a ajuda de um outro influenciador, produz um outro “conteúdo” em que dança para a câmera – eu tenho certeza que há uma metáfora aí.
5.
– Esse boné é uma relíquia, hein? – brinca Galvão Bueno antes de tirarmos uma selfie no cercadinho VIP com meu celular não-dobrável.
– Pois eu comprei o boné especialmente para este momento.
E é verdade. Há uns meses, já sabendo que faria a cobertura das Olimpíadas, comprei uma réplica do boné azul do Banco Nacional que Ayrton Senna costumava utilizar. Comentei com alguns amigos (brincando, mas falando sério) que o objetivo era ser notado pelo Galvão Bueno. Uma bobagem, eu sei, mas achei que meus pais gostariam de receber essa foto no WhatsApp.
Deixo a Casa Brasil no mesmo momento que Galvão Bueno e, para evitar algum constrangimento, finjo que estou mexendo no meu celular não-dobrável para lhe dar alguns passos de distância no Parc de la Villette. Já passa da meia-noite quando vejo um Galvão Bueno pedestre ir sumindo aos poucos na escuridão. O motorista abre a porta do carona e Galvão Bueno entra em um Mercedes. Envio a selfie para meus pais, eles compartilham no grupo da família e desço as escadas do metrô.
“Como a maioria dos outros, eu procurava alguma coisa, vivia em movimento, nunca estava satisfeito e às vezes me metia nas mais imbecis enrascadas. Nunca ficava parado por tempo suficiente para me dar ao luxo de pensar, mas de algum modo sentia que meus instintos estavam certos. Compartilhava uma espécie difusa de otimismo que dizia que alguns de nós estavam realmente progredindo, que estávamos num caminho honesto, e que os melhores dentre nós inevitavelmente chegariam ao topo.
Ao mesmo tempo, nutria suspeitas melancólicas de que a vida que levávamos era uma causa perdida, que não passávamos de atores, enganando a nós mesmos numa odisseia sem sentido. Era a tensão entre esses dois polos – um idealismo incansável e uma sensação de catástrofe iminente – que me dava forças para seguir adiante”.
(Hunter S. Thompson, também em Rum Diary)
💰 Mentoria Monetize
Estou com oito vagas abertas (três já foram preenchidas) para a Mentoria Monetize – uma mentoria para você monetizar o seu conhecimento e ganhar dinheiro na internet; estou oferecendo 10% de desconto para pagamentos à vista exclusivamente neste link.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Estou lendo O caso Morel, de Rubem Fonseca, e tendo ideias para Há algo de podre no reino da Tailândia.
O que o CEO do Patreon tem a ensinar sobre seu projeto criativo; você que é creator vai gostar desse texto do .
Duas séries incríveis na Apple TV+: Acima de qualquer suspeita e Sunny.
A trilha sonora do expediente por aqui tem sido Mid Spiral, o álbum novo do BADBADNOTGOOD.
Milton + esperanza, o álbum de Milton Nascimento e Esperanza Spalding. Ouçam. Também rolou esse encontro lindo no Tiny Desk.
Anthony Bourdain e Iggy Pop refletindo sobre a vida (e a velhice) em Miami.
✍️ Notas de rodapé
Por limitações da plataforma, não é possível assinar o Plano Vitalício diretamente no Substack, de modo que a assinatura é gerenciada através da Hotmart. Caso você seja assinante dos planos Mensal ou Anual e queira migrar para o Vitalício, envie uma mensagem para eu@matheusdesouza.com que lhe envio um link especial de pagamento com a diferença do valor que já foi pago.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
A quem interessar possa, finalmente os episódios de Parts Unknown estão disponíveis de graça e na íntegra no YouTube.
Todas as edições da Revista Manchete, de 1952 a 2007, estão disponíveis gratuitamente no site da Biblioteca Nacional.
Henry Luce (1898-1967), fundador da revista Time e do império de comunicações Time-Life, que incluía revistas como Life, Fortune e Sports Illustrated e hoje integra o conglomerado AOL/Time Warner.
Exemplo: os Jogos Olímpicos encerraram no último dia 11 e ainda tenho alguns textos para soltar (e, sim, irei cobrir as Paralimpíadas). Se estivéssemos em 1972 e eu fosse um correspondente de alguma revista com tiragem quinzenal ou mensal, sem problemas, mas estamos em 2024 e suspeito que esses próximos textos terão um interesse muito menor.
Coxinha por 9 euros.
como não estou mais nas redes sociais, não tive o desprazer de ser bombardeado por conteúdos vazios sobre as olimpíadas. muito pelo contrário, tive a enorme sorte de acompanhar a sua newsletter e ver um recorte sobre paris que não teria em nenhum outro lugar. não acho que o jornalismo literário tenha morrido. ele perdeu bastante espaço, é verdade, mas - ainda bem! - sobrevive.
Mesmo que eu ache que o jornalismo literário respira por aparelhos, ainda há esperanças. A piauí segue firme com seus textos longos e um público cativo. Só não parece ser fácil emplacar algo lá. De qualquer forma, é muito triste perceber que tantos influenciadores e seu conteúdo besta ganhem mais espaço e destaque do que quem leva informação.