[Passageiro #97] A força da grana que ergue e destrói coisas belas
Uma espécie de diário das minhas férias no litoral sul catarinense.
🎧 Para ler ouvindo1: Solitude, por Black Sabbath.
1.
Faz exatamente um mês que estou de férias no Brasil em uma tentativa de fugir das baixas temperaturas do longo inverno parisiense, minha primeira vez em terras brasilis desde que tornei-me residente da capital francesa na metade de 2023 e, revezando-me principalmente entre Imbituba e Garopaba, litoral sul de Santa Catarina, dedico minhas manhãs ao pensar; penso no passado, penso no presente, penso no futuro.
“And when I'm back in
ChicagoImbituba, I feel it
Another version of me, I was in it
I wave goodbye to the end of beginning
(Goodbye, goodbye, goodbye, goodbye)You take the man out of the city, not the city out the man”2
2.
Caetano Veloso escreveu certa vez sobre a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”; ele escreveu isso sobre São Paulo; o que escreverei a seguir serve para Imbituba, serve para Garopaba, serve para Koh Phangan: é urgente encontrar um equilíbrio sustentável entre natureza e aquilo que conhecemos por progresso.
Duas décadas se passaram desde a última vez em que estive na Praia do Ouvidor, em Garopaba. Diferente das praias do litoral norte de Santa Catarina, praias cortadas pela BR-101 e espremidas por prédios espelhados financiados por gigolôs do concreto e seus garotos-propaganda – a família Aveiro do jogador Cristiano Ronaldo, o pai de família e cidadão de bem Neymar Jr e sertanejos patrocinados por casas de aposta –, prédios tão altos que, em virtude da sombra que projetam na praia, obrigaram uma bizarra obra de extensão da faixa de areia em Balneário Camboriú – o mesmo acontecerá em Itapema – em nome de um suposto progresso; o mesmo progresso que mais cedo ou mais tarde destruirá a nossa casa; e, por “nossa casa”, não falo de um apartamento luxuoso em um desses prédios altos e espelhados, não, falo do Planeta Terra; bom, seguindo o raciocínio, diferente das praias do litoral norte de Santa Catarina, as praias do litoral sul ainda possuem um quê de paraíso inexplorado; no Ouvidor, por ora, as únicas sombras são dos guarda-sóis e das árvores que abraçam a faixa de areia.
3.
Passa das 10h da manhã quando encontramos uma vaguinha no estacionamento improvisado na estrada de terra que leva à Praia do Ouvidor; até pouco tempo era possível estacionar o carro na areia da praia; felizmente para a natureza e, infelizmente para o cidadão de bem, a prefeitura proibiu tal prática.
Achar o tal equilíbrio sustentável entre natureza e aquilo que conhecemos por progresso é urgente, mas definitivamente não é tarefa fácil; para que o mínimo de infraestrutura (pousadas, restaurantes, comércio, estradas, estacionamentos, etc) exista em praias como a do Ouvidor – ou a Praia do Rosa, a vizinha famosa –, décadas atrás acessadas apenas por trilhas, a natureza precisa ser tocada; “quem viveu, viveu, quem não viveu não vive mais” ou “no meu tempo que era bom”, algum tiozinho local, gaúcho ou argentino, certamente está falando isso neste exato momento para alguém mais jovem sobre como eram as praias do litoral sul catarinense nos anos 1970 ou 1980, da mesma maneira que eu, nascido em 1989, lembro com certa nostalgia da minha infância nas mesmas praias em uma já longínqua década de 1990.
4.
Encaixotando alguns dos muitos livros que adquiri ao longo dos anos e que, por motivos logísticos, ainda estão na casa dos meus pais em Imbituba, encontro minha coleção com as obras de Jack Kerouac publicadas pela L&PM Pocket; livros de bolso que agora seguirão comigo para Paris.
Em “Viajante solitário”, Kerouac, o rei dos beatniks, escreve:
“Poupei cada centavo e então torrei tudo subitamente em uma grande e gloriosa viagem à Europa ou a outro lugar qualquer e me senti leve e feliz também. Levou alguns meses, mas finalmente comprei uma passagem em um cargueiro iugoslavo que partiu do Busch Terminal do Brooklyn para Tânger, Marrocos. Zarpamos em uma manhã de fevereiro de 1957. Eu tinha uma cabine dupla só para mim, todos os meus livros, paz, sossego e estudo. Finalmente seria um escritor que não teria que trabalhar para os outros.”
Kerouac, bebendo da fonte de outro Jack, o London, ajudou a popularizar uma espécie de crônica estradeira disfarçada de romance que, em 2025, soa quase como utopia; se antes viajar era coisa para poucos aventureiros que cruzavam o mundo em trens, barcos ou pegando carona na estrada, hoje, com o turismo em massa e a facilidade do carro próprio financiado em suaves prestações, esse tipo de experiência, essa busca por paraísos inexplorados, parece justamente isso: uma busca; uma busca por algo, uma sensação, algo que não sabemos o quê, mas que certamente ficou no passado.
5.
Um mês após a aeronave da LATAM ter aterrissado em Guarulhos, penso que talvez eu tenha romantizado minha vinda ao Brasil; tudo mudou; eu também.
Ao fugir das baixas temperaturas do inverno parisiense, esperava fugir também do turismo em massa, esperava paz, sossego e estudo, esperava encontrar aquilo que sempre encontrei no litoral sul de Santa Catarina, mas o que encontrei aqui foi o mesmo que encontro por lá: o não pertencimento; me descobri turista em Imbituba e Garopaba da mesma forma que sou turista em Paris.
6.
Encontrei também o trânsito.
Filas quilométricas na BR-101, nos vários pedágios (em trechos onde não existiam até pouco tempo), no centrinho de Garopaba e até mesmo no trevo da Nova Brasília, bairro onde cresci e meus pais moram até hoje, bairro cujos moradores sempre sonharam com aquilo que conhecemos como progresso e que hoje, bem, hoje aquilo que conhecemos como progresso chegou até a Nova Brasilia; ouço meus pais reclamando da Nova Brasilia de hoje; “tem muita gente de fora aqui”, eles dizem para o filho que é gente de fora lá.
7.
Mudaram também as placas dos veículos.
Com o novo formato de identificação do Mercosul, exceto em caso de argentinos e uruguaios, foi-se também aquele olhar infantil ao perceber um carro emplacado em Botucatu-SP ou Sinop-MT; ficar preso no trânsito tornou-se ainda mais monótono.
8.
Paz, sossego e estudo.
Lembro dos adultos lendo livros na praia quando eu era uma criança que queria apenas jogar bola – tirando a paz dos adultos cada vez que errava um chute e acertava alguém – ou “surfar” de morey boogie no mar gelado, de modo que não entendia porque os adultos levavam seus livros para a praia, uma vez que livros para mim significavam estudo e, bem, ir à praia significava férias, o que na minha cabeça de criança com corte de cabelo de penico não fazia sentido, por que os adultos leem na praia?, me perguntava.
Hoje em dia isso mudou. O futebol continua sendo jogado por crianças e adultos, mas o sossego agora compete com as diferentes trilhas sonoras das diferentes JBLs que sufocam o som das ondas quebrando no mar gelado.
9.
I. e eu éramos os únicos – pelo menos na parte da extensão de areia em que estávamos – lendo (ou tentando ler) livros; e não me entendam mal, não escrevo essas linhas querendo mostrar algum tipo de soberba ou elitismo literário da nossa parte, naquele mesmo dia maratonaríamos “Ilhados com a sogra”, o excelente reality show da Netflix, quando escrevo coisas do tipo meu ponto não é e jamais será nesse sentido, meu objetivo ao escrever essas linhas é constatar o óbvio: o mundo mudou e nós, pessoas que escrevem livros, perdemos, assim como as novas placas do Mercosul, a relevância quando o assunto é entreter em meio à monotonia; “quem viveu, viveu, quem não viveu não vive mais”.
🧳 Clube Passageiro
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens.
Para participar dos bate-papos mensais e ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram, basta assinar um dos planos pagos da newsletter – assinantes pagos da newsletter Passageiro também têm acesso a uma edição extra e mensal com os bastidores do processo de escrita do meu primeiro romance.
Desde maio de 2023, quando o Clube Passageiro foi fundado, quase 20 workshops com os mais variados temas foram realizados – e assinantes do Plano Vitalício têm acesso a todo o acervo (são mais de 30h de conteúdo!).
Em nossa comunidade fechada no Telegram você poderá trocar ideias sobre escrita, processo criativo e mercado literário com outros participantes – e comigo; perguntas sempre serão bem-vindas.
Assim que você escolher um dos planos disponíveis, receberá um e-mail com as instruções para participar da comunidade exclusiva no Telegram e dos workshops mensais via Google Meet.
💰 Mentoria Monetize
Um programa individual e personalizado com 6 meses de duração para te ajudar a monetizar o seu conteúdo/conhecimento; e que em 2024 ajudou mais de 20 criadores dos mais diversos nichos.
🏴☠️ Faça Você Mesmo
Um curso online e gravado com a mesma metodologia que ensino na Mentoria Monetize; sem o acompanhamento e os encontros individuais ao vivo, mas por um valor mais acessível.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Meu amigo Lucão, da CopyLetter, escreveu um belo texto sobre essa sensação de não pertencimento.
Um turista argentino viralizou ao publicar um vídeo em que utiliza um bloqueador de sinais para silenciar caixas de som em uma praia brasileira.
Nem todo herói usa capa.Finalmente me rendi ao hype sobre o escritor francês Édouard Louis e, se eu pudesse dar um conselho (especialmente aos homens) para esse 2025 é: leia Édouard Louis. Dele, li “Mudar: Método” e “Monique se liberta”.
“Ruptura”, da Apple TV, volta amanhã e, se você ainda não assistiu a primeira temporada, deveria.
Completamente aleatório: uma playlist com as melhores “milongas camperas argentinas”.
Tô adorando acompanhar “Pensando alto”, o novo quadro do canal do Arthur Miller no YouTube; nesse vídeo ele fala sobre não aguentar mais trabalhar.
Você sabia que a newsletter Passageiro tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
“E quando estou de volta a Chicago, eu sinto isso / Outra versão de mim, eu estava lá dentro / Eu aceno adeus ao fim do começo / (Adeus, adeus, adeus, adeus) / Você tira o homem da cidade, mas não a cidade do homem.” – Trecho do hit “End of Beginning”, por Djo.
às vezes, parece que o que chamam de "progresso" é o oposto do conceito.
Minha edição favorita de Passageiro -- até agora. Que saudade da newsletter!!!
Tem uma música da Carne Doce (antes deles serem "cancelados") que é Sertão Urbano - "progresso é mato", canta a Salma. Tô longe de romantizar a vida no mato porque sei que tem muito trabalho invisível acontecendo pra essa vida mais bucólica funcionar. Mas não acho que "progresso", pelo menos pensando nos padrões paulistanos, seja um monte de cativeiros de 15 a 35m2 sendo construídos em toda esquina do centro expandido... A curto prazo esse "progresso" já não me cabe, muito menos a longo prazo.
Acredito que as sensações de não-lugar e não-pertencimento são passageiras. Mas volto em alguma futura newsletter pra tentar elaborar. :)
Abraços pra você e Isadora!!!!