[Passageiro #77] Turista ou viajante?
Spoiler: tenha vergonha na cara; mas também não seja besta.
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🎧 Para ler ouvindo2: Baby, por Donnie & Joe Emerson.
1.
Talvez o maior lugar-comum da literatura de viagem seja descrever uma cidade como “uma mistura do velho com o novo”; de acordo com o Instituto Passageiro de Aleatoriedades (IPA), cujas fontes são as vozes da cabeça do seu CEO & Fundador – persona non grata na Macedônia do Norte –, 9 entre 10 textos sobre Bangkok descrevem a capital da Tailândia dessa maneira: uma mistura do velho com o novo; ou então com uma variação onde o velho e o novo se encontram. Mas que preguiça. O ChatGPT faria melhor.
2.
Muito se discute sobre a diferença entre fazer turismo e viajar. Diz-se que os turistas, que geralmente estão em férias e compram pacotes de viagens com roteiros pré-estabelecidos, se deslocam em grupos e que, de forma ignorante3, fazem comparações pouco elogiosas entre qualquer coisa que estejam vendo com o equivalente de suas cidades. Os viajantes, por outro lado, supostamente se aventuram mais porque querem ter a experiência total do lugar, conversando com locais, provando comida de rua, andando sem rumo pelas cidades sem a obrigação de tirar fotos em pontos turísticos.
3.
Tha Thon é uma pequena vila cercada de mata nativa e riachos em Chiang Mai, norte da Tailândia. Elefantes circulam à vontade durante ao dia e, ao entardecer, a chuva beija a terra onde sorridentes mulheres com argolas douradas no pescoço cultivam seus vegetais. Elas são as Padaung, ou mulheres-girafa, ou ainda Karens, pertencentes a uma tribo de origem nômade que fugiu de Mianmar (antiga Birmânia) no final dos anos 1980 devido a conflitos étnicos.
Apesar de o governo tailandês ter concedido o status de refugiadas para esta e outras tribos nômades, não é permitido que as Padaung deixem a vila de Tha Thon – uma espécie de zoológico humano em que turistas posam com as mulheres-girafa para fotos que serão publicadas em suas redes sociais.
Como a Tailândia não segue os regulamentos da ONU para refugiados, as famílias que ali vivem não conseguem obter a cidadania do país nem ter direito a serviços básicos. O valor do ingresso, que custa cerca de US$ 8, é dividido entre os proprietários das terras e o governo. As Padaung/mulheres-girafas/Karens recebem um pagamento mensal de US$ 45 para sorrirem para as fotos e tentam vender seus artesanatos para os mais de 40 mil turistas que visitam Tha Thon anualmente. Além de perderem sua mobilidade geográfica, essas tribos vivem hoje em um sistema análogo à escravidão; uma vida bem diferente de outras Karens/Ashleys/Amandas, as influenciadoras do Instagram e do Tik Tok que vivem de explorar a imagem e o sofrimento de miseráveis do terceiro mundo para garantir belíssimos lucros com as famigeradas #publis.
4.
Eu costumava encher a boca para falar que “não, não sou um turista, sou um viajante, sou um nômade digital”, mas aí me mudei – no sentido de fixar residência – para uma das cidades mais turísticas do mundo, Paris, onde na última semana me dirigi ao Centre Des Finances Publiques para entregar a minha declaração de imposto de renda.
Nunca fiz isso em Bangkok – entregar uma declaração de imposto de renda –, uma cidade que também está no top 5 dos destinos mais visitados do mundo, de modo que hoje percebo que, cara, ainda que eu tenha passado uns bons meses da minha vida na Tailândia, nunca fui um local; e os tailandeses sabem disso.
5.
“O Grand Palace está fechado hoje”, diz o motorista do tuk tuk. Ele oferece um tour que não existe com o intuito de levar I. e eu, os turistas branquelos, para lojas de bugigangas e quinquilharias dos seus associados que pagarão uma comissão caso estes turistas branquelos e trouxas comprem algo.
Não, o Grand Palace não estava fechado;
Sim, já caí nesse golpe quando peguei um mototáxi em direção ao meu Airbnb, porém, como homem viajante solo (branco, heterossexual, quanto sofrimento, né?) fui parar num puteiro e, puto (no caso eu), meti a boca (vocês se contenham!!!) no motorista e cheguei em casa (Airbnb, no caso) em segurança.
Mas teve um golpe em que caí, caí bonito, caí de joelhos (vocês se contenham!!!). Mercado flutuante Damnoen Saduak, uma tourist trap a 105 km de Bangkok. Os caras queriam 6 mil bath (na época isso dava uns R$ 600) por um rolê que eu descobriria depois que custava 1 mil bath – esperto que sou negociei por 3 mil bath, metade do preço, pô.
6.
Cruzando o rio Sena de barco eu penso nas vezes em que cruzei o rio Chao Phraya – de ferry ou de long tail – fazendo turismo ou apenas me deslocando de um lado para outro em uma Bangkok onde o trânsito pode (e será) pior do que um dia de chuva em São Paulo.
E aqui troco a Argélia pela Tailândia e roubo um parágrafo de Albert Camus para dizer que a lembrança da Tailândia, da miséria da Tailândia, dos mares (e dos rios) da Tailândia, do sol da Tailândia, retorna constantemente às minhas páginas, porque lá na Tailândia eu vivi, lá na Tailândia eu fui feliz4.
7.
Essa rota fluvial do rio Chao Phraya foi idealizada por volta de 1700 para facilitar o comércio com a China e um tal de Teodor Korzeniowski, conhecido também como Joseph Conrad5, autor entre outros de Coração das trevas – que deu origem ao filme Apocalypse Now – esteve por lá em 1888, hospedou-se no Oriental Hotel que na época era um albergue pulguento e hoje tornou-se um hotel cinco estrelas, e ao pensar que já fui passageiro dessa mesma rota, embrenhando-me ao lado de outros turistas/viajantes em canais obscuros de Bangkok, a Veneza do Oriente, observando de longe senhorinhas dando ordens em suas mercearias postadas em palafitas, crianças brincando na mesma água suja que lagartos-monitores alimentam-se de carniças, ali, ali antes de Paris, ali pensei que, porra, sou um turista, óbvio que sou um turista, sou um turista fresco da porra que, quando o long tail, esse barco comprido e tradicional tailandês passa muito rápido por uma ondulação e a água espirra em mim, eu, esse turista, fico cheio de nojinho; enquanto as crianças, as crianças tailandeses, divertem-se nadando na água suja do rio Chao Phraya.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir
As gurias da França levaram um sacode dos Estados Unidos em uma divertida (e violenta) partida de polo aquático na inauguração do Centro Aquático Olímpico, mas isso pouco importa. A 2ª edição de 🏴☠️ Medo e Delírio nas Olimpíadas de Paris está no ar.
E-mail marketing é diferente de newsletter e eu posso provar.
“Nossa terra devastada”, a crônica da gaúcha
sobre o Rio Grande do Sul.Em meus estudos sobre jornalismo literário, invariavelmente, finquei raízes na obra de Gay Talese. Vale ler Fama e anonimato, com as suas melhores reportagens, e Vida de escritor, uma espécie de autobiografia.
Ainda na vibe de Bebê Rena, vale a pena assistir o documentário Amante, stalker e mortal – vida real cheia de plot twists.
Se eu ainda fosse jovem e a coluna não fosse um problema, certamente dançaria muito em baladas hipsters quando tocasse LUNCH, faixa 2 de HIT ME HARD AND SOFT, álbum novo da genial Billie Eilish.
Sério, ainda tô fazendo movimentos de dança com os braços.
I COULD EAT THAT GIRL FOR LUNCH:
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Existe um lugar distante onde você é feliz, mas ao mesmo tempo não se vê morando no curto e médio prazo? – talvez para não estragar um sentimento bom. Ok, essa pergunta foi muito específica.
✍️ Notas de rodapé
Lembrando que a newsletter Passageiro está credenciada para cobrir os Jogos Olímpicos de Paris e até agosto vai rolar muita insanidade nesse link.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
De acordo com o dicionário, a palavra ignorância significa “falta geral de conhecimento, de saber, de instrução”.
Eu contei isso em um TEDx em outubro de 2022 em Guarulhos e o vídeo nunca foi ao ar; mas vai além: a organização tem me dado ghosting. Suspeito que tenha dado algum problema com o vídeo, mas, ainda que eu tenha tentado contato insistentemente nos últimos meses com os organizadores, nunca obtive um retorno. Vocês podem me ajudar? Bora invadir o perfil do TEDX Guarulhos no Instagram nesse post e perguntar o seguinte: CADÊ O VÍDEO DO MATHEUS? Obrigado.
Joseph Conrad, esse sim um viajante, era marinheiro quando foi a Bangkok pela primeira vez. Eis o que ele viu em 1888: “Lá estava, espalhada em grande parte em ambas as margens, a capital oriental que ainda não sofreu nenhum conquistador branco. Aqui e ali, à distância, acima da aglomeração de cumes baixos e marrons, erguiam-se grandes pilhas de alvenaria, palácios reais, templos, lindos e dilapidados desmoronando sob a luz solar vertical”. A Tailândia nunca chegou a ser colonizada, mas em um país onde o turismo representa mais de 20% do PIB e muitos tailandeses vivem para servir os estrangeiros, me pego pensando se isso não seria também um tipo de colonização – mas isso é papo para outro texto.
Não estava entendendo nada no começo mas chegou no fim e tudo fez sentido. Sempre seremos turistas em qualquer outro lugar que não seja aquele que nascemos afinal, é uma ótima reflexão, amei
Cara, já pensou que daqui a alguns anos você pode ser um escritor do mesmo nível desses que você menciona? (Acho que já é, falta só o reconhecimento)
Você se sentiria realizado se, de alguma forma, tivesse a certeza de que seus textos ganharão destaque no futuro, mesmo que postumamente?
Não leio tanto ao ponto de afirmar isso, mas acho que você tem uma abordagem diferente de muitos.