[Passageiro #80] Você está feliz com a sua vida?
Sobre Rachel Cusk, realidades alternativas e escrever livros.
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🎧 Para ler ouvindo1: They Move on Tracks of Never-Ending Light, por This Will Destroy You.
1.
“A verdadeira viagem de descoberta não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos”.
Marcel Proust em seu clássico Em busca do tempo perdido.
2.
“Eu vi ela chegar”, um italiano segurando um skate em uma mão e um livro na outra diz em inglês para seu amigo recém-chegado na fila de entrada da Shakespeare and Company – sei que o rapaz skatista é italiano pois esperei tempo suficiente na fila da livraria para ouvir a conversa deles.
"Para mim, escrever e viver são a mesma coisa; ou deveriam ser. Somente prestando muita atenção à vida cotidiana é que realmente aprendo algo sobre escrever."
Rachel Cusk em entrevista para o The Sydney Morning Herald.
Enquanto o rapaz skatista conversa com o seu amigo sobre as hipóteses de título da Itália na Eurocopa – eles concordaram que França e Inglaterra são as grandes favoritas; Portugal corre por fora –, um grupo de turistas chineses faz fotos da fachada da Shakespeare and Company e do que sobrou da Catedral de Notre-Dame – que segue em reforma após o incêndio de 2019. Sou um dos únicos da fila – e a fila é grande – que não está segurando ou lendo um livro. Faço uma anotação mental de que, em uma próxima oportunidade, trarei um livro para parecer mais culto.
3.
Sou um dos últimos a entrar na livraria. Uma funcionária pede que eu suba as escadas e me acomode em uma das cadeiras na antessala do piso superior. De onde estou consigo ver Rachel Cusk na sala principal conversando com um homem alto; alto mesmo, coisa de 1,90cm pra cima. Quando o relógio marca 19h em ponto, Rachel Cusk e o homem alto descem as escadas pertinho de onde estou sentado e dirigem-se a uma sala no térreo que quem está no piso superior não consegue enxergar. Eu não sabia, mas a última vez que eu veria Rachel Cusk – e o homem alto – naquela noite seria quando o relógio marcou 19h em ponto; dali em diante, Rachel Cusk – e o homem alto – tornariam-se apenas vozes amplificadas pelos alto-falantes da Shakespeare and Company.
4.
Os smartphones e as redes sociais criaram uma espécie de FOMO2 em registrar que estamos em tal lugar e/ou vimos tal pessoa – apenas o relato não basta: precisamos fotografar e gravar vídeos, precisamos provar que estivemos em tal lugar e/ou vimos tal pessoa. Perdi minha chance de provar que vi Rachel Cusk quando a autora da trilogia Esboço desceu as escadas da Shakespeare and Company para tornar-se uma voz. Tudo o que tenho é uma foto do cartaz de divulgação do evento.
5.
Rachel Cusk está na Shakespeare and Company para uma conversa sobre o seu novo livro, Parade (ainda sem tradução no Brasil), daquelas em que explica o processo criativo da obra, em que é perguntada sobre curiosidades, essas coisas, papo interessante, mas como não estou vendo Rachel Cusk – e o homem alto –, me distraio com os retratos na parede – Leonard Cohen, Joan Didion, Allen Ginsberg, Gabriel García Márquez, Clarice Lispector (!), entre outros –, pesquiso no celular quando sai o novo episódio de Matéria Escura na Apple TV+ – 19 de junho –, Rachel Cusk perde a conta de quantos livros já escreveu – “acho que foram 15, talvez 17” –, o público ri, mas eu não, eu sinto inveja, fico ansioso, saio pelos fundos e vou embora sem pegar a fila de autógrafos – e ter mais uma chance de ver – e registrar que vi – Rachel Cusk.
6.
São poucos os podcasts sobre literatura no Brasil (vocês têm dicas?) e talvez o meu favorito hoje seja o Histórias Diversas, comandado pelo Francisco Custódio. Liana Ferraz, autora de Um prefácio para Olívia Guerra, esteve recentemente por lá e contou algo que ressoou aqui: ela prometeu a si mesma que só iria à Flip como escritora – e não como leitora – porque eventos literários geralmente lhe deixam ansiosa, uma vez que outras pessoas estão fazendo o que ela queria estar fazendo – no caso publicando um livro e falando sobre ele em algum palco (veja o trecho aqui). Em 2023, ela finalmente esteve na Flip divulgando um livro seu.
7.
Eu só volto em um evento literário na Shakespeare and Company quando for para falar de um livro meu. Ou caso a estrela da noite seja o Karl Ove Knausgård ou o Emmanuel Carrère ou algum amigo escritor ou alguma amiga escritora.
8.
“Você está feliz com a sua vida?
Essas são as últimas palavras que Jason Dessen ouve antes de acordar num laboratório, preso a uma maca. Raptado por um homem mascarado, Jason é levado para uma usina abandonada e deixado inconsciente. Quando acorda, um estranho sorri para ele, dizendo: Bem-vindo de volta, amigo.
Neste novo mundo, Jason leva outra vida. Sua esposa não é sua esposa, seu filho nunca nasceu e, em vez de professor numa universidade mediana, ele é um gênio da física quântica que conseguiu um feito inimaginável. Algo impossível. Será que é este seu mundo, e o outro é apenas um sonho? E, se esta não for a vida que ele sempre levou, como voltar para sua família e tudo que ele conhece por realidade?”
Fiquei intrigado com o mote de Matéria Escura – a série da Apple Tv+ baseada no best-seller de Blake Crouch – porque volta e meia me pego distraído pensando em realidades alternativas onde ao invés de ter ido para a faculdade passei em um teste no Flamengo e virei ídolo da torcida rubro-negra ou então um mundo em que comecei a escrever cedo, ainda na adolescência, e hoje sou um autor consagrado.
Em uma edição recente dessa newsletter comentei sobre uma ideia de romance que está na minha cabeça há uns dois anos – e que talvez seja a responsável por ter atrasado o progresso de Passageiro, o livro – e que, inspirado por obras do passado que foram publicadas primeiro em jornais ou revistas – e inspirado também pelo que a vem fazendo em – pensei que seria interessante liberar mês a mês os capítulos de Há algo de podre no reino da Tailândia (o título provisório do meu romance) para os assinantes pagos da newsletter até ele, de fato, virar livro – uma forma de eu me forçar a escrever.
Em uma realidade alternativa deve ter algum Matheus que já colocou essa ideia em prática. Por aqui, esse Matheus vai se empenhar em uma outra versão da mesma ideia: não publicarei exatamente os capítulos mês a mês, mas trechos e bastidores do processo. Não quero ser a versão do Matheus que teve essas mesmas ideias, mas que nada fez; assim como deve existir uma versão minha em algum multiverso que não teve coragem para se demitir em 2017 e que até hoje vê a vida passar pela janela de um escritório – esse Matheus, talvez, nem saiba quem é Rachel Cusk3.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Todo mundo quer fazer um livro importante. A tem razão.
A vida é como fazer yoga: é difícil, dói, mas é bom. A também tem razão.
Há autores que não são para todos os leitores?, questiona o .
É possível não criar expectativas?, questiona a .
Eu já indiquei por aqui Welcome to Wrexham? É genial. Mesmo se você não goste de futebol – que é o caso de I., que adora a série – suspeito que vá se emocionar e vibrar com esse time pequeno do País de Gales – cujos donos são Ryan Reynolds e Rob McElhenney.
Os Hermanos Gutiérrez estão de volta com o álbum Sonido Cósmico.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
O que te impede, neste exato momento, de tirar do papel aquela ideia que você vem matutando há meses?
✍️ Notas de rodapé
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Fear of missing out; ou “medo de perder algo”, em bom português.
Alguma versão minha deve ter tirado uma foto da Rachel Cusk quando o relógio marcou 19h em ponto.
Cara, falar sobre realidades paralelas mexe (ou perturba) meu imaginário há muito tempo. Preciso saber mais sobre "matéria escura" - O livro, porque esse enredo já me intrigou. Eu penso que essa nossa realidade é algo como nos filmes "Matrix".
Quando você diz que o filho do protagonista nunca nasceu, não sei, isso mexeu comigo. Hoje eu não vejo uma realidade tão magnífica que valha a pena sem os meus filhos e esposa.
Vou anotar o dia de hoje, quando você estiver dando autógrafos na shakespeare and company, vou te lembrar disso.
No momento, ainda vejo a vida passar pela janela do escritório, mas percebo uma evolução, porque há algum tempo atrás , minha ideia principal era fazer eu passar pela janela do escritório. Sigo evoluindo, em breve largo a vida CLT. Não sei ao certo o que me impede.
Que delícia essa newsletter! Foi uma leitura agradável da minha manhã de sexta com um café esfriando aqui na sala. Obrigada!