[Passageiro #84] Cada segundo conta
Tentando aprender algo com os centenários da Sardenha.
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🎧 Para ler ouvindo1: Paradiso, por Erlend Øye & La Comitiva.
1.
As pessoas viajam em suas férias para, supostamente, relaxar. Quem mora em uma cidade grande, como é o meu caso, busca no campo ou na praia uma fuga da estressante rotina do dia a dia; fugimos do trânsito, do barulho, das filas, dos turistas; fugimos.
Estou na Sardenha, ilha italiana que é uma das cinco Blue Zones2 (“Zonas Azuis”, em bom português) e que, como poucos lugares do mundo, une praias de areia branca e água transparente (algo não tão comum na Europa como é no Caribe, por exemplo) com agroturismo – desde que você alugue um carro (falaremos disso adiante).
2.
Nosso roteiro de sete dias na Sardenha é dividido entre as praias mais badaladas da Costa Esmeralda, aquelas frequentadas por Rycos & Phamosos (David Beckham está aqui com a família e ostentou tanquinho em um iate), e outras mais escondidas onde os mais variados tipos de hipsters que se autodenominam viajantes tentam fugir dos turistas – spoiler: as praias mais badaladas são badaladas por um motivo; são mais bonitas, no caso.
A spiaggia de La Cinta, por exemplo, uma dessas praias badaladas, entrou facilmente no meu Top 3 de Praias Mais Bonitas ao Redor do Mundo – e quem escreve isso é um brasileiro nascido e criado em Santa Catarina que já morou no México e na Tailândia.
3.
2024 tem sido um ano de muito trabalho – não é fácil ganhar em real e gastar em euro. Nos últimos meses tenho me virado com mentorias e com o Clube Passageiro (que em alguns dias terá seu próprio site e algumas novidades) enquanto escrevo dois livros ao mesmo tempo (!) e me preparo para uma cobertura literária dos Jogos Olímpicos de Paris (praticamente o Julius Rock de “Todo Mundo Odeia o Chris”).
Na Sardenha cada segundo conta, mas com uma lógica bem diferente daquela workaholic do Carmy, o personagem descendente de italianos interpretado pelo ótimo Jeremy Allen White em “The Bear”.
Simonetta é uma advogada por formação – e pressão da família – que trocou o estresse do direito por uma vida com propósito no lugar em que nasceu. Ela transformou a antiga propriedade dos avós em um ambiente acolhedor para turistas que querem desacelerar. Seu negócio é vendido como um workshop para quem quer aprender a fazer massas artesanais, mas na prática pode ser definido como terapia em grupo.
– Hoje vou ensinar para vocês os três segredos da longevidade do povo da minha ilha – durante as próximas três horas, Simonetta falaria orgulhosa sobre a sua ilha e o seu povo, contaria anedotas, faria piadas e pediria desculpas pelo seu “terrible English”, algo que me deixaria extremamente puto porque nenhum dos cinco estadunidenses do nosso grupo de onze pessoas que fizeram questão de se apresentar dizendo o seu estado (I am Amanda from Arkansas; o equivalente de: eu sou o Matheus de Santa Catarina) tiveram a empatia de dizer “não, não Simonetta, o seu inglês é ótimo, muito melhor que o nosso italiano”, de modo que coube a I., cujo idioma nativo evidentemente não é o inglês, ter que fazer esse tipo de comentário para tranquilizar Simonetta.
4.
Cerca de 500m antes de chegarmos em La Cinta percebo carros estacionados onde não deveriam estar estacionados; na beira da estrada, uma vibe Praia do Rosa na alta temporada, caso o(a) leitor(a) tenha a referência. Há uma placa sobre um estacionamento pago no fim da rua, mas I. e eu seguimos a lógica de George Costanza3, jamais pagamos para estacionar, de modo que em comum acordo decidimos dar uma volta no quarteirão na esperança de encontrar aquela vaguinha perfeita – que evidentemente não encontramos – e acabamos por voltar ao lugar dos carros estacionados onde não deveriam estar estacionados e, ali mesmo, numa vibe “todo mundo fez o mesmo”, deixamos o nosso carro alugado.
5.
La Cinta é realmente bonita demais. Reitero: está no meu Top 3 de Praias Mais Bonitas ao Redor do Mundo.
Além do lugar para estacionar, ao chegarmos em La Cinta brigamos também por um lugar para estendermos nossas cangas e fincarmos nossa bandeira – no caso o guarda-sol. Assim como ocorre com as vagas de estacionamento, as vagas para o fincamento de guarda-sóis em La Cinta são disputadas; não hesite quando você ver um casal guardando seus pertences como quem diz “estou vazando”, sempre pergunte “você está indo embora?” e estacione os seus próprios pertences no espaço desejado para demonstrar que você está parado ali por conta daquela vaga na faixa de areia; foi graças ao “você está indo embora?” que um casal que estava indo embora depôs em nosso favor quando um outro casal tentou pegar a nossa vaga na faixa de areia; “sim, eles haviam perguntado se estávamos saindo, desculpe”.
6.
Como bom imbitubense, sempre me preocupo com o vento na praia4. Já vi guarda-sóis desgovernados iniciarem brigas generalizadas na Praia da Vila.
Estamos I. e eu completamente relaxados, cada um lendo um livro, quando nosso guarda-sol levanta voo devido ao vento forte. Uma senhora é atingida de raspão tal qual Donald Trump em seu comício e, antes mesmo que pudéssemos perguntar para a senhora “hey, está tudo bem?”, o guarda-sol caprichosamente derruba a cerveja de um jovem adulto (vou chutar entre 20 e 23 anos) que, na esportiva, lamenta-se: “La mia birra! No! Nooooooo!”.
Tal episódio aconteceu naquele horário em que o casal começa a pensar “e que tal irmos embora?”, “mas estamos de férias”, de modo que vimos o incidente como, sei lá, um sinal para fazermos o que realmente estávamos a fim de fazer – ir embora –, nos desculpamos com os envolvidos e seguimos até o “estacionamento”, com aspas porque era só a rua, não um estacionamento em si, algo que os oficiais da lei deixaram claro na multa que encontrei no para-brisas: 42 euros por estacionar em local proibido.
O valor do estacionamento pago? 1.50 a hora. Ficamos 4 horas. Façam as contas. #OCrimeNãoCompensa
7.
Não acabou aí: suados e humilhados, paramos em um supermercado para comprar qualquer coisa. Uma das Cocas do pack de Cocas-Zero que eu segurava soltou-se da embalagem e um efeito dominó fez com que cinco das seis Cocas não apenas caíssem no chão, mas explodissem, ensopando com um líquido grudento não só a mim e I., mas também um turista coitado que esperava a esposa encostado no porta-malas de um carro provavelmente alugado – ele voltará para casa com uma boa história.
8.
Não sei se é a idade, recém fiz 35, mas estou na transformação para tornar-me um velho babão – qualquer palavra bonita ou lição de vida me emociona; tô nesse nível.
Detalhes sobre as minhas habilidades (ou a falta delas) com a combinação de água e farinha não importam, mas algo que Simonetta mencionou em inglês com o seu sotaque italiano reverberou aqui de um jeito diferente.
– Fazer massa é quase como uma meditação. Enquanto vocês estavam focados em fazer a massa, imagino que não pensaram no trabalho, nos problemas, nos estresses das vidas de vocês. Vocês focaram no aqui e no agora. Em fazer a massa. Esse é um dos segredos do meu povo: o trabalho manual.
Soarei como um coach motivacional aqui, porém é real: fazia meses, talvez anos, que eu não colocava o meu foco total em um atividade manual – rimou porque não encontrei sinônimos melhores; não se empolguem: não farei poesias de Instagram.
9.
O segundo (segredo) é o vinho.
10.
O terceiro é algo que, como imigrante, bateu diferente aqui: a socialização – não em um sentido de fazer amigos e etc, mas como rede de apoio. Fazer massa, para o pessoal da Sardenha, é juntar umas dez pessoas para modelar essa mistura de água e farinha; que junta ainda mais gente na hora de comer. É um momento para fofocar.
11.
Voltando para o nosso Airbnb após a terapia em grupo, lá pelas 22h, percebemos senhores e senhoras que devem ter entre 70 e 110 anos de idade papeando em suas varandas. O assunto não importa – fofoca, provavelmente. Cada segundo conta e eles sabem, melhor do que ninguém, que isso é verdade.
👨🎓 Cursos com inscrições abertas
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🧠 Curiosidade curiosa
Bom, tô de férias, e aí talvez alguns de vocês tenham pensado “ué, se tá de férias, como – e porquê – enviar uma newsletter?”. Eu estava mais cedo em La Cinta de bobeira, ouvindo o barulho das ondas e sendo beijado pelo sol (isso foi bonito ou o quê?!) quando saquei meu caderninho e escrevi tudo o que vocês leram acima. Ou seja, processo artesanal que depois passei a limpo.
📅 Feliz aniversário, I.
Um dos motivos de estarmos na Sardenha é o aniversário de I. – ela nasceu no dia em que, por um acaso, quem cuida dos emojis da Apple (?) escolheu como calendário (17 de julho, no caso).
Vocês fariam algo por mim?
Só enviar um “Feliz aniversário, pipica” nessa foto – velho babão demais, né?
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Sabe aquele tempo que você perde pensando no prompt perfeito para o ChatGPT? Por que não usar a sua criatividade para escrever de fato a parada? Sério. Eu tenho zero respeito por quem usa inteligência artificial para escrever – pra mim isso significa que você só é um(a) escritor(a) ruim; não me venha com essa de que “melhora a minha produtividade”. Dito isso, sei lá, não tenho uma pergunta – talvez o ChatGPT tenha –, mas fiquem a vontade para discorrer sobre.
✍️ Notas de rodapé
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
As regiões do mundo com a maior concentração de centenários; seus habitantes vivem mais do que em qualquer outro lugar do planeta. Fazem parte da lista, além da Sardenha: Okinawa (Japão), Península de Nicoya (Costa Rica), Ikaria (Grécia) e Loma Linda (Estados Unidos). Sim, assisti o documentário da Netflix.
Não consegui encaixar a explicação no parágrafo de um jeito que o texto continuasse fluído, mas bora lá: George Costanza é o personagem de Jason Alexander em “Seinfeld”.
Explicação mais simples possível para quem nunca esteve em uma praia em Imbituba (a maioria de vocês): venta muito.
Estou lendo sua newsletter agora e é curioso como me identifiquei com algumas coisas, mesmo estando no Brasil. Tenho 30 anos e retomei o hábito de ler livros fora da minha área de trabalho. Parece até engraçado, mas fazer algo por hobby e sem obrigação alguma num mundo que nos exige estar sempre atentos a tudo pode funcionar como um grande alívio. Achei muito incrível a sua experiência em fazer massa e foi isso que me chamou a atenção. Às vezes é bom lembrar que está tudo bem desacelerar e curtir o processo das coisas.
Eu morei em uma cidade no interior da Itália por uma temporada e tive o prazer de viver esse experimento da longevidade. Uma das coisas que mais me inquietou foram as dinâmicas e autonomia dos "anciões" da cidade. Diferente daqui do Brasil em que os mais velhos são praticamente colocados em escanteio e vistos como incapazes, na Itália eles são estimulados a viverem com autonomia. E com certeza a vida social é uma grande facilitadora dessa realidade. Adorei essa lição preciosa sobre "fazer uma massa e colocar a mão na massa para desligar a mente".