[Passageiro #105] Atravessei a Ponte do Rio Kwai na Ferrovia da Morte
Mirei no Anthony Bourdain, mas acertei na Nana Gouvêa fazendo ensaio fotográfico em meio aos escombros do furacão Sandy.
🎧 Para ler ouvindo1: Don’t Let It Pass, por Junip.

📍 Kanchanaburi, Tailândia
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
🙏 Antes da crônica, um aviso e um agradecimento:
– O aviso:
Recebi algumas mensagens de amigos e leitores sobre o terremoto que atingiu Bangkok. Felizmente, voltei para Paris anteontem. Eu estava hospedado no 22º andar de um prédio residencial e provavelmente teria passado por um grande susto – para dizer o mínimo. Evidentemente estou triste e chocado com o que aconteceu, mas bem e seguro no meu apartamento em Paris. Obrigado pela preocupação.
– O agradecimento:
Eu não sei exatamente qual foi o ponto de virada, onde e como isso aconteceu, mas num dia estou entregando panfletos em cancelas de shopping ou colocando-os em caixas de correio e para-brisas de carros (desculpa você que já teve que retirar do seu para-brisas um panfleto colocado por mim; garanto que sempre tive o cuidado em não estragar as hastes do limpador) sob um sol escaldante de quase 40 graus durante o verão catarinense, já formado e pós-graduado, perto de completar 30 anos, sem nunca ter trabalhado na minha área e sem perspectiva alguma no interior de Santa Catarina, e no outro estou na Tailândia (pela 5ª vez!) – também sob um sol escaldante de quase 40 graus – esperando um trem que atravessará a Ponte do Rio Kwai na Ferrovia da Morte que liga a Tailândia à Birmânia (atual Mianmar). E escrevei sobre isso. E serei pago (!) por isso. “Pago” não por um veículo tradicional – ou de um jeito tradicional. Não serei pago por um desses dinossauros corporativos da mídia. Não. Serei pago pela generosa comunidade de leitores que financia o meu trabalho através da newsletter Passageiro, do Clube Passageiro, do meu livro e dos meus cursos; o que é ainda melhor: me traz uma liberdade (geográfica, financeira e editorial) que, em 2025, empresa nenhuma me traria.
Sei que a palavra “gratidão” está meio banalizada, mas é exatamente isso que sinto neste exato momento enquanto espero o trem na estação Thon Buri em Bangkok: gratidão a você, querido leitor e querida leitora, que financia o meu trabalho; e que me permite enxergar o mundo com os meus próprios olhos.
(Escrevi isso – ou algo parecido com isso – no meu caderninho minutos antes de embarcar no trem).
1.
A Ferrovia Thai-Burma, conhecida popularmente como Ferrovia da Morte, foi construída entre outubro de 1942 e outubro de 1943 por prisioneiros de guerra; cerca de 180 mil asiáticos e outros 100 mil Aliados (principalmente britânicos e australianos) capturados pelo exército japonês durante a Segunda Guerra Mundial. A Ferrovia tem esse “apelido” porque, durante o período de sua construção, cujo objetivo era levar suprimentos de Bangkok até Yangon (Birmânia; hoje Mianmar) em meio à selva, estima-se que mais de 100 mil prisioneiros tenham morrido devido à exaustão, à inanição e aos maus tratos a que eram submetidos.
A construção original possuía 415 km de extensão, indo de Nong Pladuck, na Tailândia, até Thanbyuzayat, na Birmânia, através de 62 paradas e 688 pontes ao longo do caminho; a mais famosa delas, a Ponte do Rio Kwai, foi imortalizada em 1952 no romance do escritor francês Pierre Boulle e, posteriormente, em 1957, na adaptação cinematográfica2 dirigida por Sir David Lean e vencedora de 7 Oscars.
2.
Dos 415 km originais, sobraram os primeiros 130 do lado tailandês. Em Bangkok, são dois trens diários saindo da estação Thon Buri até a última parada, em Namtok; o primeiro (257) parte às 07h45; o segundo (259), o que pego porque acordei tarde, às 13h55.
Não é possível reservar ou comprar o bilhete pela internet, de modo que chego com meia hora de antecedência para garantir o meu por 100 baht (R$ 16,81).
Todos os assentos são de terceira classe; janelas sem vidros, bancos de madeira e nada de ar condicionado, apenas uns poucos ventiladores – e nem todos funcionando – para espantar os 36 graus.
Às 13h55 em ponto, o trem 259 deixa a estação Thon Buri. Sentado na janela, sinto o ar pesado e fumegante enquanto Bangkok vai ficando para trás.
3.
A residência literária em Bangkok tem me proporcionado alguns momentos raros. Entre 2017 e 2023 vivi uma vida nômade carregando o meu escritório na mochila e, pouco mais de 30 países depois, finquei minha bandeira em Paris. Devo confessar que, após passar tanto tempo na estrada e ter viajado para tantos lugares, poucas coisas me impressionam hoje em dia – o que é uma pena –, perdi um pouco daquele encantamento da descoberta e, em alguns países – principalmente os europeus –, tudo acaba eventualmente sendo mais do mesmo, mas aí tem a Ásia, mais especificamente o Sudeste Asiático, que sempre, sempre me surpreende. Foi assim em Ayutthaya; foi assim na tarde de 24 de março de 2025 em que cruzei a Ferrovia da Morte. Não escrevo isso como se fosse um desbravador, um viajante aventureiro fazendo algo inédito, tanto Ayutthaya quanto o trem 259 estavam cheios de outros turistas ocidentais como eu, mas há algo no ar, há uma estranha liberdade em desbravar esses lugares que a literatura clichê de viagens insiste em classificar como “exóticos”; há também um sentimento agridoce, um aperto no coração em imaginar que Ayutthaya só está em ruínas por conta da invasão birmanesa e que a Ferrovia da Morte tem esse apelido por um motivo cruel; penso nisso em Ayutthaya quando vejo um casal de turistas sorridentes fazendo uma selfie em meio às ruínas; penso nisso quando ligo a câmera frontal do meu celular e faço um vídeo do meu rosto enquanto o trem 259 avança pela Ferrovia da Morte; o vídeo é publicado em um story no Instagram com os dizeres “ok, isso é uma das coisas mais Anthony Bourdain que já fiz” seguido de “nem o Google Maps localiza” e um sorriso orgulhoso sem mostrar os dentes. Vários likes.
Nana Gouvêa
em meio aos escombros
do furacão Sandy
em Nova York.
4.
São exatamente 16h19 quando o trem 259 chega em Kanchanaburi. De longe vejo os turistas que acordaram cedo e pegaram o trem 257 das 07h45 aglomerados e apontando suas câmeras e celulares para o trem 259 que se aproxima da Ponte do Rio Kwai. Com uma das mãos posiciono minha câmera cuidadosamente na janela e gravo um take que eventualmente fará parte de um vlog na PassageiroTV; com a outra faço mais um vídeo com o celular que é publicado em um story no Instagram com um textinho que é uma versão reduzida e motivacional do agradecimento que abre essa crônica e o título “Vencemos, gurizada”. Vários likes.
Nana Gouvêa
em meio aos escombros
do furacão Sandy
em Nova York.
5.
Atravesso a Ponte do Rio Kwai com meu conteúdo gravado – na câmera e no celular – e lembro de uma cena do filme “A vida secreta de Walter Mitty”.
Sean O’ Connell (Sean Penn) está prestes a fotografar um leopardo raro no Monte Everest, mas absorto no momento, nega-se a registrar o animal. O que temos a seguir é um dos diálogos mais belos do cinema.
“Quando você vai tirar a foto?”, pergunta Walter Mitty (Ben Stiller).
“Às vezes eu não tiro a foto. Se eu gostar de um momento, particularmente, eu não gosto de ter a distração da câmera. Eu apenas gosto de estar nele”, responde Sean.
(Não encontrei a cena com legendas em português)
6.
Distraído com minha câmera e celular e toda essa produção de conteúdo – que ainda me renderá muitos likes –, desço na estação errada. Na verdade, não é bem uma estação; o trem me larga no meio do nada. Olho para os lados e só vejo mato e uma plantação de arroz. Um senhor, o único a descer do trem junto comigo, caminha pelo trilho. Decido segui-lo.
(O momento em que o trem vai embora e me dou conta que estou no meio do absoluto nada no interior da Tailândia)
7.
Avisto um templo. E carros. E barracas. Ouço música tocando. O senhor caminha pelo meio do mato em direção a movimentação. Vou atrás. Está acontecendo um evento de arrecadação de fundos para o templo. Os tailandeses me olham como se nunca tivessem visto um farang3 por aqueles lados. Abro o Google Maps e percebo que estou longe de onde deveria estar – a rodoviária onde pegarei uma mini van até Bangkok fica a 30 minutos dali. Não há transporte público até lá. Abro o Grab, uma espécie de Uber tailandês, mas com mais funcionalidades e sem taxas abusivas, e percebo que não existem motoristas disponíveis na região. Abro novamente o Google Maps e vejo que há uma pizzaria italiana pertinho do templo, 10 minutos a pé. Os donos devem ser ocidentais, penso. Parece-me um bom lugar para pedir ajuda com um táxi.
8.
Caminho pela rodovia em direção à pizzaria italiana quando cachorros de rua ameaçam me atacar. De novo. Dou meia volta e os bichos recuam. Vejo uma mercearia do outro lado da rodovia e decido ir até lá.
“Olá, você fala inglês?”, pergunto para uma tailandesa na casa dos 50 anos.
“Pouco”, ela responde em tinglish4, o jeito bem específico que os tailandeses falam inglês.
Mostro meu celular com a localização da estação de ônibus e explico que preciso de um táxi até lá, pergunto se ela pode me ajudar.
Vejo pela sua cara que ela não entende exatamente o que digo, “espera”, ela diz, e volta com sua filha que deve ter no máximo 15 anos. “Ela fala inglês.”
A filha realmente fala inglês e explica para a mãe e para outros tailandeses – que presumo serem familiares – o que está acontecendo, mostro mais uma vez o endereço, um homem que parece ser o pai aponta para um senhor que está sentado na calçada, eles conversam algo, riem, a filha diz “ok, ele te leva lá, espere um pouco”, o senhor caminha pela rodovia, a filha pede mais uma vez que eu espere, me oferece uma cadeira.
O pai tenta puxar assunto.
“De onde é?”
“Brasil”.
“Futebol. Como é? Como é o nome?”
“Ronaldinho?”
“Ronaldinho e Carlos” – imagino que ele esteja falando de Roberto Carlos, o ex-lateral.
“Você”, ele aponta pra mim, “futebol?”
“Eu costumava jogar quando era criança”, digo, mas não sei se ele entende, faço um sinal com as mãos mostrando o tamanho de uma criança pequena, ele sorri.
O senhor retorna numa motinho velha. Ele aponta para o banco como quem diz “sente-se, te levo lá”, ele não fala inglês, mas seu olhar diz tudo. Ele vai me ajudar, vai ajudar um estranho. Junto as mãos para agradecer aquela família, “sawadee krap”, agradeço em tailandês, eles riem. O senhor acelera. Olho para trás e vejo aquela família de tailandeses acenando para mim. Aceno de volta.
9.
Na garupa da moto daquele senhor, câmera pendurada no pescoço, observo a paisagem do interior da Tailândia.
Plantações de arroz.
Um templo chinês colorido.
Um estátua gigantesca de um Buda no topo de uma montanha.
Uma criação de búfalos.
O cemitério de guerra onde muitos dos prisioneiros que construíram a Ferrovia da Morte estão enterrados.
Vejo tudo isso vencendo o impulso de ligar a câmera para criar conteúdo, para ganhar likes.
O sol começa a se por e, antes de fazer uma curva, o senhor diminui a velocidade e aponta para o horizonte. Um elefante caminha a passos lentos em meio a vegetação.
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O filme, no entanto, foi filmado no Sri Lanka.
“Farang” é o nome que os tailandeses dão para os “gringos”.
Cara! Incrível esses momentos, né. É justamento quando a gente está mais vulnerável, precisando de ajuda, que surgem esses diálogos e situações inusitadas. Não deve ter jeito melhor de conhecer uma cultura. E elefante é meu animal favorito!!! hahahah
A vida secreta de Walter Mitty é um dos meus filmes favoritos. Muito bem lembrado aqui. E que bom que vc está seguro em casa, Matheus. Abraço!