[🇹🇭 Tailândia #6] Residência literária em Bangkok
Mudei-me temporariamente para dentro do romance que estou escrevendo em busca da alma encantadora das ruas; mas não só.
🎧 Para ler ouvindo1: White Gloves, por Khruangbin.

✍️ Por Matheus de Souza
📍 Bangkok, Tailândia
Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
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1.
Desembarquei no aeroporto Suvarnabhumi no dia 28 e, por motivos diversos, tenho sentido certa dificuldade em fazer aquilo que, supostamente, estou aqui para fazer: escrever um romance.
Os primeiros dias da viagem (sem passagem de volta) têm sido uma tentativa de estabelecer uma rotina em um fuso dez horas a frente do Brasil (meu trabalho) e seis da França (minha casa) que tem me feito dormir tarde e acordar tarde; e ainda tem o jet lag, essa alteração no relógio biológico que me deixou meio grogue por umas 48 horas.
Mas o processo de escrever um livro é também não escrever; é ir para as ruas, é caminhar sem rumo, é ser um flâneur.
Por flâneur, esse personagem que tem origem veja só você, na França, nosso João do Rio diz o seguinte em “A alma encantadora das ruas”:
"(…) Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem.
(…) Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.
(…) O flâneur é ingênuo quase sempre. Para diante dos rolos, é o eterno ‘convidado do sereno’ de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos, acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação."
2.
Tenho andado, ou flanado, muito. É só o que faço. Estou buscando uma casa em Bangkok não para mim, mas para o personagem principal/narrador do romance; até ele se mudar para a fictícia Koh Jai.
Eu não tiro o mérito de quem escreve uma história que se passa em lugar X sem ter pisado no lugar X; muitos acadêmicos vivem de pesquisar sem viver a prática – e isso não é uma crítica, uma vez que os próprios críticos (literários ou do cinema) criticam aquilo que não tem capacidade de fazer, meu ponto é sobre viver a história; ainda que fictícia. É sobre entrar num restaurante qualquer e, após uma queda de energia num dia cuja temperatura está batendo 40º e o ar condicionado não funciona, “sem ar condicionado hoje, sir, tudo bem?!”, o garçom te abanar com o cardápio como se você fosse um imperador romano e você dizer, “obrigado, você não precisa fazer isso”, mas aí ele volta, ele volta e você agradece novamente e ele te agradece de volta (!), mas aí ele volta uma terceira vez e você só aceita e vive aquilo: alguém te abanando como um imperador romano enquanto você degusta uma refeição que não custou R$ 10 e você deixa uma gorjeta que custou mais que a própria refeição e o garçom, aquele garçom que te abanou com o cardápio, fica confuso e você vai embora, mas vai embora com essa história que apenas quem já esteve no lugar X pode contar.
3.
E como essa tantas outras.
O vendedor de rua que domou uma píton de três metros pegando-a pelo rabo e arrastando-a pelo asfalto (até sabe-se lá onde; deve ter virado espetinho); uma outra cobra que foi achada congelada num picolé (!); o racha de tuk-tuks que acabou num acidente quase fatal; os lagartos-monitores que, sem predadores, reproduzem-se sem parar no Lumpini Park e assustam os transeuntes (você já viu um lagarto-monitor de perto?), o turista britânico que entrou no país há 25 anos e “esqueceu” de pedir a extensão do seu visto – tudo isso aconteceu em Bangkok; essa semana.
4.
Não estou aqui apenas para escrever; estou pelos detalhes.
Caminhando hoje pela Chinatown de Bangkok, posiciono a câmera para registrar a fachada de um Fotoclub – ainda que eu não saiba exatamente o que é um Fotoclub.
Um motoqueiro, não o tipo de motoqueiro que estou habituado por essas bandas, não o tipo de motoqueiro que pilota uma dessas scooters – como chamamos no Brasil – estilo Honda Biz, mas um motoqueiro que pilota uma dessas motos grandes estilo Harley; esse tipo de motoqueiro específico passa em frente ao Fotoclub no exato momento em que posiciono a câmera.
Mais do que a foto – que achei muito boa! – e a lembrança do momento, encontrei a personalidade de um dos personagens principais do livro: um motoqueiro; não o tipo de motoqueiro que estou habituado por essas bandas, não o tipo de motoqueiro que pilota uma dessas scooters – como chamamos no Brasil – estilo Honda Biz, mas um motoqueiro que pilota uma dessas motos grandes estilo Harley.
Entende o que quero dizer?
Ande.
Flane.
Perca-se.
5.
Você não precisa encontrar a alma encantadora das ruas em Bangkok – é que o meu livro se passa na Tailândia, no caso –, mas se eu pudesse dar um conselho, e mesmo se eu não pudesse eu daria mesmo assim, a newsletter é minha afinal de contas, e o tal conselho seria: SAIA DA POR** DO SOFÁ.
Quer escrever?
Vai viver antes, bicho.
Aproveita pra largar a por** do celular também.
Por que eu compraria um livro seu e não do ChatGPT?
Pois é.
Vive.
Depois escreve.
🇹🇭 Anteriormente em Há algo de podre…
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente. Também criei uma playlist com as músicas que tenho escutado enquanto escrevo Há algo de podre no reino da Tailândia.
É sobre nao perder o olhar de turista: aquele que ve beleza em tudo. =)
By the way, estou indo pra India no fim do ano e lendo suas cartas ta me dando vontade de esticar ate a Tailandia.
Se em poucos dias voce ja tem todas essas historias para contar, tenho certeza que seu romance será muito rico!
Achei chique viajar pra escrever o seu romance hahaha espero que encontre toda a inspiração que está buscando! Inclusive, estou com viagem marcada pra Tailândia final do ano, estou animada ;)