[Passageiro #90] Na pior em Paris
Ganhar em real; gastar em euro; a vitória do capitalismo.
🎧 Para ler ouvindo1: Star Treatment, por Arctic Monkeys.
1.
Em 1928, o jovem Eric Arthur Blair, recém-chegado da Birmânia, antiga colônia britânica que hoje chama-se Mianmar, onde trabalhava como policial, fixou residência em Paris com algumas economias, uns alunos de inglês e o sonho de ser escritor; em pouco tempo restaria apenas o sonho; Eric foi roubado, perdeu os alunos, passou fome e, sem dinheiro, trabalhou em restaurantes sórdidos da capital francesa antes de mudar-se para Londres; lá viveu como mendigo.
Felizmente para nós, o sonho manteve-se vivo: a experiência de viver na pobreza extrema resultou no pioneiro relato Na pior em Paris e Londres, obra que mistura jornalismo documental e técnicas literárias de ficção; e serviu de inspiração para o aclamado Cozinha confidencial de um tal Anthony Bourdain.
2.
Eric Arthur Blair é o nome verdadeiro de George Orwell.
Você talvez o conheça por 1984 e A revolução dos bichos.
3.
Também na década de 20, mas um século depois, o já não tão jovem Matheus de Souza fixaria residência em Paris com algumas economias, uns alunos de escrita e o sonho de viver de literatura; ele chegou a publicar um livro, foi finalista de um prêmio importante, mas sua carreira literária não chegou exatamente a decolar; ele depende dos cursos e mentorias que oferece na internet para pagar as contas.
4.
Matheus está longe da pobreza, esse não é o caso, ele ganha o suficiente para pagar as contas do mês – em Paris – e os impostos em dois países (sua Pessoa Jurídica está sediada no Brasil), porém, apesar de ter trabalhado muito em 2024, inclusive cobrindo a última edição das Olimpíadas, sente que, este ano, seu esforço foi em vão; seus ganhos são razoáveis, mas na moeda errada; ele ganha em real, mas gasta em euro.
5.
Dizem que “quem converte não se diverte”.
Talvez isso faça sentido para o turista que passa três ou cinco dias em Paris, mas no caso de Matheus, quase dois anos se passaram; ultimamente ele tem convertido cada cafezinho, cada pain au chocolat; e, de fato, não há nada divertido nisso.
6.
“Mas Matheus não deveria, então, ir embora de Paris?”, isso certamente passa pela cabeça do leitor mais atento, mas o que ele, o leitor, talvez não o mais atento, provavelmente não perceba é que, como diria o saudoso poeta maloqueiro Alexandre Magno Abrão, o Chorão, o Choris:
“Cada escolha, uma renúncia, isso é a vida
Estou lutando pra me recompor”
7.
Desde 2017, Matheus tem liberdade geográfica para trabalhar remotamente (e de forma autônoma) de onde seus ganhos permitirem; de lá para cá ele passou por 30 países; aí mudou-se para Paris.
“Por que Paris?”, sempre lhe perguntam.
A esposa de Matheus recebeu uma proposta para trabalhar na cidade; uma daquelas irrecusáveis. Nem ela nem ele pensaram duas vezes; “por que não?”, pensaram. Em termos de carreira, era a grande oportunidade da vida dela; era a escolha que fazia sentido na época; eles fizeram o que tinha que ser feito; não se arrependem.
8.
Eric viveu na mesma Paris de Ernest Hemingway, a Paris da Geração Perdida, mas, diferente do Nobel de Literatura, sua vida em Paris não era exatamente uma festa; eles até viveram na mesma rua, no 5º arrondissement, mas curiosamente seus caminhos nunca se cruzaram; não nos anos 1920.
9.
Eric e Ernest encontrariam-se anos depois, já na década de 1930, quando Eric – através de seu pseudônimo – desfrutava de algum prestígio na comunidade literária.
Ambos lutaram na guerra civil espanhola e, de acordo com Paul Potts, escritor e amigo de longa-data de Eric, os escritores encontraram-se no Hotel Scribe, uma espécie de quartel-general dos correspondentes de guerra; Eric, além de romancista, era jornalista; Ernest já vivia da sua fama.
“Eu sou Eric Blair.”
“Que diabos você quer?”, respondeu um Ernest impaciente.
“Eu sou George Orwell.”
Ernest, que segundo registros da Shakespeare & Company pegou emprestado um exemplar de Homenagem à Catalunha em 1938 – e nunca o devolveu! –, puxou uma garrafa de whisky do bar e disse:
“Por que você não falou antes? Tome um drink.”
10.
A esposa de Matheus lhe envia um post no Instagram sobre o privilégio daqueles que fazem arte desde cedo por não terem a obrigação de entrar numa faculdade pensando em uma futura estabilidade financeira; filhos de pais ricos dos grandes centros financeiros do Brasil que apoiam seus rebentos em faculdades de cinema, artes plásticas e afins.
Matheus lê a edição mais recente d’O Caderno Amarelo, a versão paga de , a newsletter de Carol Bensimon, uma de suas escritoras contemporâneas favoritas.
Carol escreve sobre não ter tido grandes avanços no romance que começou a escrever em janeiro de 2024; “sou apenas mais uma pessoa exausta”, ela escreve contando sobre suas atividades extracurriculares que, assim como as de Matheus, envolvem cursos, leituras e feedbacks; “seria diferente se o seu outro trabalho fosse, sei lá, jardinagem”, um amigo de Carol comenta.
11.
Quinta-feira (31) tem edição nova de Há algo de podre no reino da Tailândia, um texto mensal somente para assinantes pagos em que Matheus compartilha o processo de escrita do seu primeiro romance.
Matheus não teve muitos avanços com o seu romance desde a última atualização enviada aos seus leitores, mas não por falta de ideias, por bloqueio criativo ou algo do tipo; lhe falta algo mais precioso: tempo.
Desde a cobertura das Olimpíadas, Matheus viu seu trabalho acumular. Além dos livros que está escrevendo (Passageiro tem mais de 150 páginas escritas; Há algo de podre… chegou nas primeiras 10), ele divide seu tempo entre seus alunos e mentorados, entre a produção de conteúdos nas redes sociais e os textos não de uma, mas duas newsletters (ele inventou de lançar uma segunda newsletter!); ah, e ainda restam dois textos atrasados das Olimpíadas (“O dia em que treinei com uma maratonista olímpica” e “Do que eu falo quando eu falo de boxe”).
O problema em fazer várias coisas ao mesmo tempo, percebe Matheus ao chegar exausto no fim de 2024, é que, segundo ele, você não consegue colocar 100% da sua energia em cada um dos seus projetos; tudo parece incompleto; sempre falta algo.
“Falta ganhar em euro”, Matheus pensa antes de divulgar o próximo encontro do Clube Passageiro; e os R$ 200 de desconto no Plano Vitalício.
12.
Matheus não sabe exatamente porque escreveu sobre si mesmo na terceira pessoa, mas gostou da experiência.
Ele recomenda o exercício criativo.
🎨 Clube Passageiro #18: Viver de arte (feat. Pe Lu, da banda Restart)
No encontro de outubro do Clube Passageiro, Matheus tem a honra de receber , da banda Restart; um músico, compositor, produtor e mentor musical com mais de 500 mil discos vendidos e 1 bilhão de streamings nas plataformas – e de forma independente!
Sim, esse será um papo nostálgico que quem tem mais de 30 certamente irá adorar, mas a conversa irá além disso: será uma grande reflexão em grupo (Matheus conta com vocês) sobre os rumos que o “viver de arte” têm tomado; o Pe Lu começou no finado MySpace (!), passou por Fotolog e Orkut, viu plataformas surgirem e sumirem na mesma velocidade, viveu a fama, os julgamentos, o hate e, pra nossa sorte, segue aqui fazendo o que ama; e inspirando outros artistas a fazerem o mesmo.
Pe Lu também tem uma newsletter aqui no Substack:
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Seja o seu próprio nicho, sugere Matheus na outra newsletter; aparentemente ele virou megalomaníaco2.
Por que escrevo, breve coletânea de ensaios sobre escrita, é um dos livros favoritos do Matheus.
É permitido sonhar com jabutis? , semifinalista do Prêmio Jabuti3, escreve sobre encontrar um lugar na escrita.
Um texto do para quem odeia autopromoção.
Matheus anda meio repetitivo citando Arthur Miller toda semana na newsletter, mas segundo nosso CEO Soberano esse vídeo sobre como a produtividade destrói a criatividade “está alinhado com o tema da edição.”
Finalmente o Matheus assistiu Perfect Days, o hypado filme japonês e, segundo ele, “assista, só assista; tem no MUBI. A trilha sonora é espetacular.”
Ainda de acordo com o Matheus, “a Apple TV+ tem acertado muito nas séries originais”. Ele indica Disclaimer, a obra mais recente do serviço de streaming.
Pra quem curte Khruangbin, Matheus indica o álbum MACROCOSM, do BALTHS; “um som parecido, mas colombiano, ou seja, latinidade.”
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Uma pergunta do Matheus para os leitores da newsletter Passageiro:
“Como vocês que trabalham em diversas frentes gerenciam quanto tempo dedicar em cada projeto sem enlouquecer ao ponto de escrever sobre si mesmo na terceira pessoa?”
Você sabia que a newsletter Passageiro tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Nota de esclarecimento: as observações do narrador não representam a opinião de Matheus de Souza.
Quantas vezes vocês já viram o Matheus dizer por aí que foi finalista do Prêmio Jabuti? Pois é. Escrever um livro novo que é bom, nada…
Agradeço ao Matheus pela citação!!
Por aqui é apagando um incêndio por vez ou vendendo o almoço para comprar a janta. Tem vezes que conseguimos adiantar uns dias e podemos respirar, mas é preciso se programar para parar e sentar o dedo no computador ou no CapCut. Temos ainda o projeto de publicar alguns vídeos longos no YouTube, mas em meio à produção de redes sociais, blog, newsletter e livro, acaba ficando em segundo plano.
P.S.: escrevemos em terceira pessoa também! O narrador é nós, o Sem chaves, e falamos da Pati e do Faraó. Quem escreve acaba falando na terceira pessoa, como nesse comentário (será que veio da Pati ou do Faraó? rs). Ficou sensacional a news assim!