[Passageiro #91] Estou pronto, meu Senhor
Festival das Lanternas; uma vida arruinada pela Tailândia; a iluminação de Buda.
🎧 Para ler ouvindo1: You Want It Darker, por Leonard Cohen.
1.
Ainda não amanheceu em Paris enquanto escrevo essas palavras; são 7h12 da manhã na capital francesa e o sol (quando aparece) tem dado as caras lá pelas 7h50.
Por aqui, escuridão; em Bangkok, no entanto, os tailandeses já devem ter almoçado; khao pad, khao soi, tom yam; pad thai para os farangs2.
Às vezes tenho dessas: acordo pensando que horas são na Tailândia – e o que tem para o almoço; em Koh Phangan eu estaria almoçando o melhor stir fried cashew nuts do mundo por uns R$ 15; em Paris eu mal compro um pain au chocolat por esse preço.
2.
Na 17ª edição desta Passageiro, há mais de um ano, escrevi que “a Tailândia arruinou a minha vida”. A verdade é que nada, nada foi o mesmo desde que pisei pela primeira vez neste “exótico3” país situado no Sudeste Asiático; entre idas e vindas foram mais de um ano vivendo em terras tailandesas.
Fisicamente, a Tailândia não está tão longe assim; na primeira vez em que aterrizei no Aeroporto Internacional de Suvarnabhumi, em 2017, foram mais de 40 horas de viagem saindo do Brasil – uma promoção absurda (R$ 1.500 ida e volta!) cujo itinerário era: Florianópolis → Buenos Aires → Guarulhos (!) → Doha → Seul → Bangkok. Hoje, daqui de Paris, consigo chegar em Bangkok em um voo direto com pouco mais de 11h de duração (peguei o caminho contrário quando me mudei para esse lado do oceano).
3.
O Festival das Lanternas de Chiang Mai, o Yi Peng, é muito mais do que um evento “excêntrico4” para farang ver – é um ritual de renovação espiritual profundamente enraizado no budismo tailandês; o budismo Theravada.
Para os budistas tailandeses, soltar uma lanterna no Yi Peng é uma espécie de promessa: a promessa de ser uma pessoa melhor no ano que segue; de agir com mais compaixão, bondade e virtude. Isso porque, de acordo com a crença budista, ao soltar a lanterna você deixa todos os males, azares e desgraças do ano anterior para trás.
4.
Enquanto observo as lanternas desaparecerem, não em Chiang Mai, mas no Wat5 Phra Chetuphon de Paris (que não fica exatamente em Paris, mas nas redondezas), sinto que existe uma poesia silenciosa na crença de que é preciso vê-las sumir completamente para que a liberação seja completa; algo que talvez tenha a ver com o fogo.
“You want it darker? We killed the flame6”, cantaria o judeu Leonard Cohen.
5.
“Eu já perdi contato com algumas pessoas que eu costumava ser”, escreveu certa vez Joan Didion.
Eu já fui várias coisas ao longo desses 35 anos.
Católico.
Jogador de futebol.
Skatista.
Surfista.
Punk.
Nômade.
Ateu.
6.
Já fui várias coisas, serei muitas outras nos próximos 35 anos e, ainda que eu tenha perdido o contato com algumas pessoas que eu costumava ser, não consigo mais imaginar uma vida em que a minha própria vida e a Tailândia não estejam interligadas de alguma forma.
No momento, daqui do frio e da escuridão de Paris, escrevo um romance que se passa na fumegante e ensolarada Tailândia – os assinantes pagos da newsletter podem acompanhar o processo de escrita aqui.
7.
Diferente dos deuses onipotentes que habitam reinos celestiais, Buda foi um ser humano. Carne e osso. Um príncipe que abandonou todos os privilégios que o mundo material poderia oferecer para buscar algo maior, mais verdadeiro, algo que estivesse além das ilusões efêmeras da vida.
Siddhartha (o Buda) não tinha poderes divinos. Sentia medo, dores e dúvidas como qualquer outro. Quando deixou o palácio (Siddhartha era um príncipe; e a monarquia tailandesa usa isso como forma de endeusar seus monarcas; mas isso é papo pro romance), trocou o conforto pelas incertezas de uma vida dedicada à busca da iluminação. Viveu como asceta, enfrentou privações extremas e, por um tempo, se perdeu na crença de que a negação do corpo traria a libertação espiritual. Foi só quando percebeu que o caminho do meio – o equilíbrio entre os extremos – era a chave, que finalmente encontrou a serenidade.
8.
Buda era um ser humano que conquistou a iluminação através do esforço e da disciplina; ele não nasceu perfeito; transformou-se através da prática e da compreensão. É essa humanidade que inspira milhões até hoje: a ideia de que qualquer um, se comprometido com boas ações e, tendo o mínimo de autoconhecimento, pode alcançar a paz interior e uma vida plena.
No Festival das Lanternas, o que se busca não é uma intervenção divina para corrigir o destino; os tailandeses honram o espírito de Buda ao lembrar que a iluminação vem de dentro, de cada um de nós.
Acender uma lanterna e fazer um desejo é um gesto de fé no próprio potencial de transformação, na capacidade humana de se purificar, aprender com os erros e seguir um caminho mais luminoso; é um momento de reconhecimento de que, assim como Buda, somos capazes de transcender o sofrimento, de deixar as trevas para trás e acender a luz que habita em nós mesmos.
2024 ainda não acabou, mas do alto dos meus 35, ainda que eu tenha sido esforçado e disciplinado, sinto que este talvez foi um dos anos com mais provações do que iluminações que vivi; não faço a menor ideia do que 2025 guarda para mim, mas eu estou pronto, meu Senhor; me leve à Tailândia mais uma vez; só mais uma vez.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir
Sobre o Festival das Lanternas: esse vídeo do blog (o melhor blog em português sobre a Tailândia) explica direitinho o rolê.
O que não faz de você budista; um livro que é uma boa introdução ao budismo.
Se escrevo hoje é porque há pouco mais de uma década descobri o trabalho do . Ele chegou aqui no Substack contando como foi a sua experiência participando da oficina de nada mais nada menos que o cineasta Werner Herzog.
Falando em Herzog, Arthur Miller, o meu YouTuber favorito, conheceu o cara em Amsterdam – e contou tudo nesse vídeo.
Quando a escuridão chega por aqui, dou play em Midnight Diner: Tokyo Stories, na Netflix.
Eu fiz uma playlist com músicas que remetem à minha Tailândia.
Já indiquei aqui, mas não custa relembrar: A LA SALA, o álbum mais recente do Khruangbin7, é puro suco da vibe Tailândia.
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Qual a sua Tailândia? Pode ser um país, um estado, uma cidade; aquele lugar que não sai do seu pensamento.
Você sabia que a newsletter Passageiro tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
“Farang” é o nome que os tailandeses dão para os “gringos”. “Pad thai” é, digamos, o prato mais “acessível” da culinária tailandesa ao paladar ocidental; perdi a conta de quantos comi de 2017 para cá.
Uso o termo entre aspas porque não há nada tão clichê e reducionista na literatura de viagem quanto descrever um lugar como “exótico”. Exótico para quem, cara pálida?
Eu odeio a literatura de viagem escrita por ocidentais – principalmente os estadunidenses; absolutamente tudo “diferente” daquilo que acontece dentro das suas fronteiras vira “exótico” ou “excêntrico”.
“Wat” é “templo” em tailandês.
“Você deseja mais escuridão? Nós apagamos a chama.”
“Khruangbin” significa “avião” em tailandês.
Sério, a trilha sonora desse texto. 😭 Impecável. You want it darker, we kill the flame.
"Minha Tailândia" até o momento é Florianópolis. Me sinto até um pouco brega de falar tanto de Floripa assim, mas não é a toa que chamam lá de Ilha da Magia... Acho que nas últimas vezes que estive lá, fui capaz de entender, sentir e viver umas coisas que em São Paulo são simplesmente impossíveis. Quando a gente cresce no meio do concreto, acho que viver mesmo que temporariamente num lugar rodeado de natureza em todo canto muda radicalmente a química do cérebro. Mas toda vez que começo a romantizar demais, meu cérebro lembra que lá é o lugar com a especulação imobiliária mais absurda que já vi no país.
Há umas semanas atrás mandei um texto seu de "Há algo de podre no reino da Tailândia" pra minha melhor amiga e ela foi precisa no feedback: "o jeito que ele escreve faz parecer que a gente tá ali no meio". Toda vez que você escreve sobre a Tailândia dá vontade de parcelar uma passagem e ir pra lá amanhã. Com essa news não poderia ser diferente.
Espero poder conhecer lá em breve a partir do seu olhar e poder fazer outras sinapses a partir do meu.
Pés no chão e paciência no processo.
Obrigada pelo texto ❤️
Minha Tailândia é Florianópolis. Desde que pisei nessa ilha no verão de 2006, me encantei. Não à toa, morei por quase oito anos (2010–2017) nessa ilha, que foi e ainda é o meu lugar no mundo. Descobri que sou insular. Saí de uma ilha para morar em outra. Mas Floripa continua na minha alma e no meu coração.